A Escola Portuguesa
Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisão:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola é o zangão.Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d’aurora.Soletram versos e prosas
Horríveis; contudo, ao lê-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmúrios de estrela.Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.Oh, que existência doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatória!E como os dias são longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martírios!
João Félix co’as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lírios!Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeã,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discíp’lo — Amanhã!Como é que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se é o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!
Poemas sobre Assassinos
9 resultadosNatal
Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infane.Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
A Guerra
Musa, pois cuidas que é sal
o fel de autores perversos,
e o mundo levas a mal,
porque leste quatro versos
de Horácio e de Juvenal,Agora os verás queimar,
já que em vão os fecho e os sumo;
e leve o volúvel ar,
de envolta como turvo fumo,
o teu furor de rimar.Se tu de ferir não cessas,
que serve ser bom o intento?
Mais carapuças não teças;
que importa dá-las ao vento,
se podem achar cabeças?Tendo as sátiras por boas,
do Parnaso nos dois cumes
em hora negra revoas;
tu dás golpes nos costumes,
e cuidam que é nas pessoas.Deixa esquipar Inglaterra
cem naus de alterosa popa,
deixa regar sangue a terra.
Que te importa que na Europa
haja paz ou haja guerra?Deixa que os bons e a gentalha
brigar ao Casaca vão,
e que, enquanto a turba ralha,
vá recebendo o balcão
os despojos da batalha.Que tens tu que ornada história
diga que peitos ferinos,
poema de combate
indecente rimar, uma criança
a esbugalhar os olhos de pavor.
uma cidade a arder. a governança
do mundo a esquivar-se: a sua dança
rima obscenamente com timor.indecente rimar. lua assassina.
uma rajada e outra. um estertor.
um uivo, um corpo, um morto em cada esquina.
honra do mundo que se contamina
no arame farpado de timor.indecente rimar sândalo e vândalo.
sacode a noite apenas o tambor
das sombras acossadas. tens o escândalo
que te invadiu a alma, mas comanda-lo?
onde te leva o grito por timor?indecente rimar pois também rimam
temor, tremor, terror e invasor
por mais hipocrisias que se exprimam
enquanto de hora a hora se dizimam
os restos do que resta de timor.indecente rimar: mas nas florestas
nunca rimaram tanta raiva e dor
a às vezes são precisas rimas destas,
bumerangue de sangue com arestas
da própria carne viva de timor.
Ouve, Meu Anjo
Ouve, meu anjo:
Se eu beijásse a tua pél?
Se eu beijásse a tua boca
Onde a saliva é um mél?…Quiz afastar-se mostrando
Um sorriso desdenhoso;
Mas ai!
– A carne do assassino
É como a do virtuoso.N’uma attitude elegante,
Mysteriosa, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febríl.Na vidraça da janella,
A chuva, léve, tinia…Elle apertou-me, cerrando
Os olhos para sonhar…
E eu, lentamente, morria
Como um perfume no ar!
lamento para a língua portuguesa
não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
Amor à Vista
Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.Mas o mar e os montes…
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.Mar e montes teus beijos, meu amor!…
Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
Visão Dezasseis
Deixando nele marcas como se estivesse dentro
de um círculo de fogo. Ou como um assassino
emparedado na cal a quem lançassem musgo
até à morte. Há ali um espaço solto, o sítio onde
os pássaros devoram os peixes. E uma zona escura
com um manto redondo tapando a luz, uma espécie
de cegueira em cujo centro existe um castanheiro
e uma caixa vazia. Um papel voa, desliza junto
a um muro e é daí que a música se espalha presa a
um fio de cobre. É nesse momento que a imagem
dela se forma e se despedaça. O seu corpo
é agora o vento.