O Amor Antigo
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.Se em toda a parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
Poemas
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às coisas
que tenta
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no passado
indiferente.
Meridional
Cabelos
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Noite de Sonhos Voada
Noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca armodaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ó meu amor, já é dia!…
Mãe
mãe
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantastatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam de existiresperdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memóriatrocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te um naufrágio
de flores cansadas
e o único jardim de amor
que cultivei de navios ancorados ao espaço
Cura de Ser quem És
Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.
Homem, um Corpo Choro!
Aqui, dizeis, na cova a que me abeiro,
Não ‘stá quem eu amei. Olhar nem riso
Se escondem nesta leira.
Ah, mas olhos e boca aqui se escondem!
Mãos apertei, não alma, e aqui jazem.
Homem, um corpo choro!
Doente
Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d’olhar cálido…
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: – coitado, está por pouco!…Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço…Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar…São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Louvor do Aprender
Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c’os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.Tradução de Paulo Quintela
Sugestão
Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.Flor que se cumpre,
sem pergunta.Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.Não como o resto dos homens.
Finda
A conclusão de tudo é só a morte
e não há mais epílogo nem finda.
Não se termina o verso nem o curso
mudamos à conversa interrompida.Não findamos o verso nem acaba
o desfazer-se o mar contra esta praia.
A conclusão de tudo é só a morte,
nem o silêncio quebra a sua amarra.Sequer há conclusão? Sequer há morte
nas palavras deixadas pelos recantos
mais sujos e perdidos do seu norte?Amor que nos moveu no desalento,
a pátria destes versos foi só pura
imaginação por dentro da memória.(Mas já outras canções nos estremecem:
longe do coração começa a História.)
Semântica Electrónica
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim – o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
– Mas – diz-me a ordenança –
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens…
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
Acto ou qualquer outra Coisa
Acto ou qualquer outra coisa. Eu sei, aquela mulher
tão tranquila
vendo da janela do quarto o porto
vendo dos barcos o fumo rente aos mastros
eu seiessa mulher bem podia ter o nome quando
por detrás da janela observa
outras coisas que não são barcos e mastros.Talvez os homenzinhos de azul despertem seus desejos
ou só o azul desbotado, mas não
não nessa janela nesse porto de cidade que não sei
e ela sabeenvolta no vestido, ruivo o cabelo,
envolta nas madeiras da portada.
O chão deve ranger sob os seus pés.
Do Sentimento Trágico da Vida
Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Antes do Nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Spleen
Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;Quando se muda a terra em húmida enxovia
D’onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no tecto apodrecido;Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D’uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em frebre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,– Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorrar e a carpir se arrastam pelo mundo;Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh’alma sombria. A sucumbida Esp’rança,
Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!Tradução de Delfim Guimarães
A Casa
É um chalé com alpendre,
forrado de hera.
Na sala,
tem uma gravura de Natal com neve.
Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem.
Mas afirmo que tem janelas,
claridade de lâmpada atravessando o vidro,
um noivo que ronda a casa
— esta que parece sombria —
e uma noiva lá dentro que sou eu.
É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar.
Uma ideia de exílio e túnel.
O Teu Aniversário
Pediste-me sorrindo, ó minha flor gentil,
Uns versos às tuas vinte alvoradas de Abril.
Vinte anos já!… não creio, estás equivocada…
Enganas-te. Eu irei perguntar à alvorada
Quantas vezes pousou em êxtase, ao de leve,
A sua boca de rosa em tua fronte de neve.
Vinte anos! Podes crer, pomba que eu idolatro,
Que se o corpo fez vinte, a alma, não: fez quatro.
A tua alma nasceu inefável, divina,
Para ser sempre grande e sempre pequenina.
É como a estrela d’alva; enche o seu esplendor
O Mundo, e ela não enche o cálix duma flor!…
Na Véspera de não Partir Nunca
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego…
Grande tranqüilidade…
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!
A Nada Imploram Tuas Mãos já Coisas
A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo
Da úmida imposta terra.Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
Te ergue qual eras, hoje
Cortiço apodrecido.E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
Não lembra. A ode grava,
Anônimo, um sorriso.