Solidão
Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espessoEsta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírioÉ então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarouMas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resignaLonge
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo
Passagens de Mia Couto
388 resultadosNão podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.
Quem constrói a casa não é quem a ergueu mas quem nela mora.
Não existe pureza quando se fala da espécie humana. Não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.
Os homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes nervosas suspeitas.
Tristeza não é chorar. Tristeza é não ter para quem chorar.
Não me basta ter um sonho. Eu quero ser um sonho.
Assim esteve Deus para mim: primeiro, ausente, depois, desaparecido.
O maior empobrecimento provém da falta de ideias, da erosão da criatividade e da ausência de debate produtivo. Mais do que pobres, tornamo-nos inférteis.
O homem sem mulher, sem filho, é como quem não tem espelho.
Nocturnamente
Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpoPeito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncioSabes agora para o que venho
e por isso me desconheces
Falta-nos rir saudavelmente de nós mesmos. O não nos levarmos tão a sério pode ser a melhor cura para o pecado da soberba.
O navio é uma ilha habitada por homens e os seus fantasmas.
O tempo é o eterno construtor de antigamentes.
Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso mas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças.
Quando nascemos sabemos tudo, mas não lembramos nada. Depois crescemos, vamos ganhando lembrança e encolhendo sabedoria.
Esse medo que os homens nutrem das mulheres, desses antigos demónios que apenas o gesto feminino pode soltar.
Chorar junto pode ser melhor do que fazer amor…
De que valia dormir se ela não adormecia os sonhos? (…) De que servia cantar se a sua alma acabara ensurdecendo?
Em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontens ou mais amanhãs?