Passagens de Mia Couto

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Solidão

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Não podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.

Não existe pureza quando se fala da espécie humana. Não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.

Os homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes nervosas suspeitas.

O maior empobrecimento provém da falta de ideias, da erosão da criatividade e da ausência de debate produtivo. Mais do que pobres, tornamo-nos inférteis.

Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

Falta-nos rir saudavelmente de nós mesmos. O não nos levarmos tão a sério pode ser a melhor cura para o pecado da soberba.

Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso mas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças.

Quando nascemos sabemos tudo, mas não lembramos nada. Depois crescemos, vamos ganhando lembrança e encolhendo sabedoria.

Esse medo que os homens nutrem das mulheres, desses antigos demónios que apenas o gesto feminino pode soltar.

De que valia dormir se ela não adormecia os sonhos? (…) De que servia cantar se a sua alma acabara ensurdecendo?

Em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontens ou mais amanhãs?