Poemas de Fernando Pessoa

97 resultados
Poemas de Fernando Pessoa. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

Cerca de Grandes Muros Quem te Sonhas

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde Ă© visĂ­vel o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros tĂŞm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vĂŞm do chĂŁo crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu Ă©s –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tĂŁo pobre que nem tu a vĂŞs…

Quando Ă© que o cativeiro

Quando Ă© que o cativeiro
Acabará em mim,
E, prĂłprio dianteiro,
Avançarei enfim?

Quando Ă© que me desato
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto?
Quando Ă© que me serei?

Quando, ao virar da esquina
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna
Da alma que Deus me deu?

Quando é que será quando?
Não sei. E até então
Viverei perguntando:
Perguntarei em vĂŁo.

Abat-Jour

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza

Sobre o chĂŁo que Ă© meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chĂŁo incerto
Um cĂ­rculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chĂŁo
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei … Era dia
E longe de aqui…
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
AtĂ© de sonhar…

Como a Noite Ă© Longa!

Como a noite Ă© longa!
Toda a noite Ă© assim…
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p’r’ao pĂ© de mim…

Amei tanta coisa…
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou… Já nĂŁo sei…
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei…

Que Ă© feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

Começa a Ir Ser Dia

Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
NĂŁo sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidĂŁo vazia.
SĂł sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vĂŁo o dia chega
Quem nĂŁo dorme, a quem
NĂŁo tem que ter razĂŁo
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama nĂŁo tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que Ă© isto que a minha alma sente?
Nem isto, nĂŁo, nem eu,
Na noite que se perde.

Ao Longe, ao Luar

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que Ă© que me revela?

NĂŁo sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor nĂŁo se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

De Quem Ă© o Olhar

De quem Ă© o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
NĂŁo os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo ?

Ă€s vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Por mim prĂłprio mesmo
Em alma mal existo,

Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.

Se acenderem as velas
E nĂŁo houver apenas
A vaga luz de fora —
NĂŁo sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que Ă© minha vida agora!

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido Ă© nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.

Tomamos a Vila depois de um Intenso Bombardeamento

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
Ă€ beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro…

E o da criança loura?

Tenho Tanto Sentimento

Tenho tanto sentimento
Que Ă© frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso Ă© pensamento,
Que nĂŁo senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que Ă© vivida
E outra vida que Ă© pensada,
E a Ăşnica vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Flor que nĂŁo Dura

Flor que nĂŁo dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

NĂŁo te perdi
No que sou eu,
SĂł nunca mais, Ăł flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.

Pobre Velha MĂşsica!

Pobre velha mĂşsica!
NĂŁo sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
NĂŁo sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? NĂŁo sei:
Fui-o outrora agora.

NĂŁo sei quantas almas tenho

NĂŁo sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, sĂł tenho alma.
Quem tem alma nĂŁo tem calma.
Quem vĂŞ Ă© sĂł o que vĂŞ,
Quem sente nĂŁo Ă© quem Ă©,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e nĂŁo eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha prĂłpria paisagem,
Assisto Ă  minha passagem,
Diverso, mĂłbil e sĂł,
NĂŁo sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue nĂŁo prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto Ă  margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Quando estou só reconheço

Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que sĂŁo
Como eu sĂłs, salvo que estĂŁo
Alheados desde o começo.

E se sinto quanto estou
Verdadeiramente sĂł,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.

Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por cousa esquecida.

Intervalo

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado —
Aquele amor cheio de crença e medo
Que Ă© verdadeiro sĂł se Ă© segredado?…
Quem te disse tĂŁo cedo?

NĂŁo fui eu, que te nĂŁo ousei dizĂŞ-lo.
NĂŁo foi um outro, porque nĂŁo sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi sĂł que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi sĂł qualquer ciĂşme meu de ti
Que o supĂ´s dito, porque o nĂŁo direi,
Que o supĂ´s feito, porque o sĂł fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que nĂŁo passa do meu pensamento
Que anseia e que nĂŁo sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca —
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

Continue lendo…

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem Ă© feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raĂ­z –
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente Ă© ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visĂŁo que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vĂŁo
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. SebastiĂŁo?

O Menino de Sua MĂŁe

No plano abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

TĂŁo jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho Ăşnico, a mĂŁe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mĂŁe.

Andei Léguas de Sombra

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu Ă s avessas
Meu Ăłcio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
NĂŁo pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de sĂşbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.

Feliz Dia para Quem É

Feliz dia para quem Ă©
O igual do dia,
E no exterior azul que vĂŞ
Simples confia!

Azul do céu faz pena a quem
NĂŁo pode ser
Na alma um azul do céu também
Com que viver

Ah, e se o verde com que estĂŁo
Os montes quedos
Pudesse haver no coração
E em seus segredos!

Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu
TĂŁo belo ser
Quem de si sente que perdeu
A alma p’ra os ter!

Mar PortuguĂŞs

Ă“ mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mĂŁes choraram,
Quantos filhos em vĂŁo rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, Ăł mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao Ă© pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

De Onde Ă© quase o Horizonte

De onde Ă© quase o horizonte
Sobe uma névoa ligeira
E afaga o pequeno monte
Que pára na dianteira.

E com braços de farrapo
Quase invisĂ­veis e frios,
Faz cair seu ser de trapo
Sobre os contornos macios.

Um pouco de alto medito
A névoa só com a ver.
A vida? NĂŁo acredito.
A crença? Não sei viver.