Sonetos Interrogativos de Alexandre O'Neill

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A Morte, esse Lugar-Comum

É trivial a morte e há muito se sabe
fazer – e muito a tempo! – o trivial.
Se nĂŁo fui eu quem veio no jornal,
foi uma tosse a menos na cidade…

A caminho do verme, uma beldade
— não dirias assim, Gomes Leal? —
vai ser coberta pela mesma cal
que tapa a mais intensa fealdade.

Um crocitar de corvo fica bem
neste anĂșncio de morte para alguĂ©m
que nĂŁo vĂȘ n’alheia sorte a prĂłpria sorte…

Mas por que nĂŁo dizer, com maior nojo,
que um menino saiu do imenso bojo
de sua mĂŁe, para esperar a morte?…

O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (NĂŁo Ă© meu…)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a prĂłpria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar…

Auto-Retrato

O’Neill (Alexandre), moreno portuguĂȘs,
cabelo asa de corvo; da angĂșstia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e nĂŁo cicatrizada.

Se a visagem de tal sujeito Ă© o que vĂȘs
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral tambĂ©m tem os seus quĂȘs
(aqui, uma pequena frase censurada…)

No amor? No amor crĂȘ (ou nĂŁo fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor nĂŁo hĂĄ feito) das maneiras mil

que sĂŁo a semovente estĂĄtua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…

E de Novo, Lisboa…

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se Ă© de homem ou de boi?
O sangue Ă© sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue Ă© vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?