Passagens de Carlos Queirós

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Prece do Natal

Menino Jesus
De novo nascido,
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!

Vede que os humanos
Erros e cuidados
Nos são tão pesados
Como há dois mil anos.

A nossa ignorância
É um fardo que arde.
Como se faz tarde
Para a nossa ânsia!

Nós somos da Terra,
Coisa fria e dura.
Olhai a amargura
Que esse olhar encerra.

Colai o ouvido
À alma que sofre;
Abri esse cofre
Do sonho escondido.

Pegai nessa mão
Que treme de medo;
Sondai o segredo
Da minha oração.

Esta pobre gente
Que mal é que fez?
Nós somos, talvez,
Um povo «inocente»…

Menino Jesus
Que andais distraído
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!

A mais insofrida
De tantas misérias
– Não termos mais férias
Ao longo da vida –

Trocai por amenas
Manhãs sem cuidados,
Silêncios banhados
De ideias serenas;

Por cantos e flores
Risonhas imagens
Macias paisagens
Felizes amores!

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Desaparecido

Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar’ceu…»
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
– Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desaparceu…»
Eu, o feliz desapar’cido!

Libera Me

Livrai-me, Senhor,
De tudo o que for
Vazio de amor.

Que nunca me espere
Quem bem me não quer
(Homem ou mulher).

Livrai-me também
De quem me detém
E graça não tem,

E mais de quem não
Possui nem um grão
De imaginação.

Canção Grata

Por tudo o que me deste:
— Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco…
— Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado…
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

Anti-Soneto

Ao Mário Saa

O nosso drama de portugueses,
O nosso maior drama entre os maiores
Dos dramas portugueses,
É este apego hereditário à Forma:
Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às vírgulas certas, às quadras perfeitas,
À estilística, à estética, à bombástica,
À chave de ouro do soneto vazio
– Que põe molezas de escravatura
Por dentro do que pensamos
Do que sentimos
Do que escrevemos
Do que fazemos
Do que mentimos.