Longos

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Longos para ler e compartilhar. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Quando És Atencioso e Comovente, Perco a Cabeça

Henry,

Acabaste de sair. Disse ao Hugh que tinha de acrescentar algo ao meu trabalho. Tive de voltar para cima, para o meu quarto, outra vez, e ficar só. Estava tão cheia de ti que tinha medo de mostrar a minha cara. Henry, nenhuma partida tua me deixou tão abalada. Não sei o que foi hoje que me atraiu a ti, que me fez frenética por estar perto de ti, para dormir contigo, para te abraçar… Uma ternura louca e terrível… Um desejo de cuidar de ti… Foi uma grande dor para mim teres ido embora. Quando falas da maneira como falaste das Mädchen [in Uniform] , quando és atencioso e comovente, perco a cabeça.

Para ficar contigo por uma noite eu daria toda a minha vida, sacrificaria cem pessoas, deitaria fogo a Louveciennes, seria capaz de tudo. Isto não é para te preocupar, Henry, é só porque não consigo impedir-me de o dizer, que estou a transbordar, desesperadamente enamorada por ti como nunca estive por alguém. Mesmo que fosses embora amanhã de manhã, a ideia de estares a dormir na mesma casa teria sido um doce alívio do tormento que suporto esta noite, o tormento de ser cortada ao meio quando fechaste o portão atrás de ti.

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Nada Vence as Paixões Profundas de Cada Um

As paixões opõem-se às paixões, e podem servir de contrapeso umas às outras; mas a paixão dominante não se pode conduzir senão pelo seu próprio interesse, real ou imaginário, porque ela reina despoticamente sobre a vontade, sem a qual nada se pode. Contemplo humanamente as coisas, e acrescento nes­se espírito: nem todo o alimento é próprio para todos os cor­pos; nem todos os objetos são suficientes para tocar deter­minadas almas. Quem acredita serem os homens árbitros soberanos dos seus sentimentos não conhece a natureza; consiga-se que um surdo se divirta com os sons encantado­res de Mureti, peça-se a uma jogadora, que está a jogar uma grande partida, que tenha a complacência e a sabedo­ria de se enfadar durante a mesma, nenhuma arte pode fazê-lo.
Os sábios enganam-se quando oferecem a paz às paixões: as paixões são inimigas dela. Eles elogiam a mo­deração para aqueles que nasceram para a acção e para uma vida agitada; que importa a um homem doente a delicadeza de um festim que lhe repugna? Nós não conhecemos os defeitos de nossa alma; mas ainda que pudéssemos conhecê-los, raramente havería­mos de os querer vencer.
As nossas paixões não são distintas de nós mesmos; al­gumas delas são todo o fundamento e toda a substância da nossa alma.

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A Verdadeira Generosidade

Observo em nós apenas uma única coisa que nos pode dar justa razão para nos estimarmos, a saber: o uso do nosso livre-arbítrio e o domínio que temos sobre as nossas vontades. Pois as acções que dependem desse livre-arbítrio são as únicas pelas quais podemos com razão ser louvados ou censurados, e ele torna-nos de alguma forma semelhante a Deus ao fazer-nos senhores de nós mesmos, desde que por cobardia não percamos os direitos que nos dá.
Assim, creio que a verdadeira generosidade, que faz um homem estimar-se a si mesmo no mais alto grau em que pode legitimamente estimar-se, consiste somente, por uma parte, em que ele sabe que não há algo que realmente lhe pertença a não ser essa livre disposição das suas vontades, nem por que ele deva ser louvado ou censurado a não ser porque faz bom ou mau uso dela; e, por outra parte, em que ele sente em si mesmo uma firme e constante resolução de fazer bom uso dela, isto é, de nunca deixar de ter vontade para empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores. Isso é seguir perfeitamente a virtude.

Nota: O latim generosus designa o homem ou animal que é de boa raça.

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Desejo

Oh! quem nos teus braços pudera ditoso
No mundo viver,
Do mundo esquecido no lânguido gozo
D’infindo prazer.

Sentir os teus olhos serenos, em calma,
Falando d’além,
D’além! duma vida que sonha minha alma,
Que a terra não tem.

Eu dera este mundo, com tudo o que encerra
Por tal galardão:
Tesouros, e glórias, os tronos da terra,
Que valem, que são?

A sede que eu tenho não morre apagada
Com tal aridez:
Pudesse eu ganhá-los, e iria seu nada
Depor a teus pés.

E só desejando mais doce vitória,
Dizer-te: eis aqui
Meu ceptro e ciência, tesouros e glória:
Ganhei-os por ti.

A vida, essa mesma daria contente,
Sem pena, sem dor,
Se um dia embalasses, um dia somente,
Meu sonho d’amor.

Isenta do laço que ao mundo nos prende,
A vida que vale?
A vida é só vida se o amor nela acende
Seu doce fanal.

Aos mundos que eu sonho pudesse eu contigo,
Voando, subir;
Depois que importava? depois no jazigo
Sorrira ao cair.

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Os Captivos

Encostados ás grades da prisão,
Olham o céo os palidos captivos.
Já com raios obliquos, fugitivos,
Despede o sol um ultimo clarão.

Entre sombras, no longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cae do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das cousas, lentamente.

E os captivos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em intimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.

E dizem os captivos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade…
A ave tem o vôo e a liberdade…
O homem tem os muros da prisão!

Aonde ides? qual é vossa jornada?
Á luz? á aurora? á immensidade? aonde?
— Porém o bando passa e mal responde:
Á noite, á escuridão, ao abysmo, ao nada! —

E os captivos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pezar secreto,
Como quem soffre e cala algum tormento.

E dizem os captivos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devezas?

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A Culpa dos Males que nos Acontecem

Em todos os males que nos acontecem, olhamos mais para a intenção do que para o efeito. Uma telha que cai de um telhado pode ferir-nos mais, mas não nos desola tanto como uma pedra atirada de propósito por uma mão maldosa. O golpe, por vezes, falha mas a intenção nunca erra o alvo. A dor física é a que menos se sente nos ataques da sorte e, quando os infortunados não sabem a quem culpar pelas suas infelicidades, culpam o destino, que personificam e ao qual atribuem olhos e uma inteligência disposta a atormentá-los intencionalmente.
É o caso de um jogador que, irritado com as suas perdas, se enfurece sem saber contra quem. Imagina que a sorte se encarniça intencionalmente para o atormentar e, encontrando alimento para a sua cólera, excita-se e enfurece-se contra um inimigo que ele próprio criou. O homem sábio, que em todas as infelicidades que lhe acontecem só vê golpes da fatalidade cega, não tem essas agitações insensatas; grita na sua dor, mas sem exaltação, sem cólera; do mal que o atinge só sente os ataques materiais, e os golpes que recebe podem ferir a sua pessoa, mas nenhum atinge o seu coração.

Um Campo Batido pela Brisa

A tua nudez inquieta-me.

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,

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O Estado de Transe

O estado de transe é um estado quase normal no ser humano; basta muito pouco para provocá-lo. Uma coisa de nada, um pouco de álcool no sangue, um pouco de droga, excesso de oxigénio, a cólera, o cansaço. Mas este estado é interessante na medida em que é orientável. Trata-se de um balanço, mas esse lança mão das regiões desconhecidas do nosso espírito. De facto, não há fundamentalmente nenhuma diferença, entre um homem intoxicado pelo álcool e um santo que se entregue ao êxtase. E no entanto há apesar de tudo uma diferença: a da interpretação. O momento de loucura é preparado por uma etapa onde o assunto é mergulhado numa espécie de vacilação da consciência, de excitação cerebral violenta. É esse momento que fabrica verdadeiramente o êxtase e lhe dá o sentido. Enquanto o êxtase em si mesmo é cego. É o vazio total, sem ascensão nem queda. A calma plana. Tanto quanto se possa dizer que o santo nunca conhecerá Deus. Aproxima-O, depois regressa. E estas duas etapas são as que são. Entre as duas, é o nada. O vazio, a amnésia completa. No momento X do êxtase, o santo e o intoxicado são semelhantes, estão no mesmo local.

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Disponibilidade Mental

Gostaria de exprimir uma ideia que me ocorreu recentemente. Quando estava a viver sozinho neste país, notei como a monotonia de uma vida pacata estimula uma mente criativa. Existem algumas ocupações, mesmo na sociedade moderna, que requerem uma vida isolada e não exigem grande esforço físico ou intelectual. Vêem-me à ideia ocupações como o serviço de faróis e de barcos-faróis. Seria possível colocar jovens que desejem reflectir sobre problemas científicos, especialmente de natureza matemática ou filosófica, nestas ocupações? Muito poucos jovens com semelhantes ambições têm, durante o período mais produtivo da sua vida, a oportunidade de se dedicarem, sem interrupções durante um certo período de tempo, a problemas de natureza científica. Mesmo um jovem que tenha a sorte de obter uma bolsa de estudo durante um período limitado de tempo é pressionado a chegar o mais depressa possível a conclusões definitivas. Tal pressão apenas pode ser prejudicial a um estudante de ciência pura. Com efeito, o jovem cientista que começa uma profissão prática que lhe permite ganhar o suficiente para viver está numa posição muito melhor, assumindo, é claro, que a sua profissão lhe deixa tempo e energia suficientes para se dedicar ao trabalho científico.

Regresso ao Lar

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!…
Foi há vinte?… Há trinta?… Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!…

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida…
Só achei enganos, decepções, pesar…
Oh, a ingénua alma tão desiludida!…
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!…

Trago de amargura o coração desfeito…
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!…
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!…

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar…
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!…
Minha velha ama, sou um pobrezinho…
Canta-me cantigas de fazer chorar!…

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!…), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!…

Canta-me cantigas manso, muito manso…
tristes, muito tristes, como à noite o mar…

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Reciclagem de Amizades

Um homem de mente activa e elástica desgasta as suas amizades, assim como certamente desgasta os seus casos amorosos, as suas tendências políticas e a sua epistemologia. Elas tornam-se puídas, esfrangalhadas, artificiais, irritantes e deprimentes. Transformam-se de realidades vivas em nulidades moribundas, e entram em sinistra oposição à liberdade, ao auto-respeito e à verdade. É tão repelente conservá-las, depois que se tornam ocas e podem ser sopradas como uma mosca, quanto manter uma paixão depois que esta paixão já se tornou um cadáver. Todo o homem prudente, ao lembrar-se de que a vida é curta, deveria dispensar uma hora ou duas, de vez em quando, para um exame crítico de suas amizades. Deve pesá-las, repensá-las, testar se ainda contêm algum metal. Algumas poderão sobreviver, talvez com mudanças radicais nos seus termos. Mas a maioria será varrida em poucos minutos e ele tentará esquecê-las, assim como tenta esquecer os seus frios e pegajosos amores do ano retrasado.

A Intimidade do Escritor

Há quase um ano sozinho, na antiga vida de solteirão. Tem sido duro, mas útil. De vez em quando faz-me bem estar só e desamparado. É nessas horas que sinto mais profundamente a significação de uma mulher ao lado do artista. A história literária exibe prodigamente o cenário feminino e mundano que aconchega os criadores e lhes embeleza a vida. Mas diz-nos pouco das companheiras quotidianas, domésticas e anónimas, a verem nascer a obra, a aquecê-la com chávenas de chá, e a renunciarem à alegria de a conhecer na emoção virginal de um leitor apanhado de surpresa. E nada de mais significativo e decisivo do que essa ajuda e do que essa renúncia. As Récamiers são o estímulo de fora, higiénico e lisonjeiro; enquanto que as outras, íntimas e apagadas, empurram o carro trôpego da criação debaixo de todos os ventos, e sem aplausos no fim. O seu lema é a aceitação calma e confiante dos desânimos, dos rascunhos, das mil tentativas falhadas. E quando a obra, finalmente acabada, empolga o público, já tem atrás de si um tal cansaço, uma tal soma de horas desesperadas, que só com um grande amor a podem ainda olhar.
Por esse amor não existir,

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Viver Sozinho

A infelicidade do celibatário, pretensa ou verdadeira, é tão fácil de adivinhar pelo mundo que o rodeia que ele maldiz a decisão, pelo menos se ficou solteiro por causa dos prazeres que tem em segredo. Anda por aí com o casaco abotoado, as mãos nos bolsos do casaco, os braços flectidos, o chapéu bem enterrado para a cara, um sorriso falso, que se tornou natural nele, pretende esconder-lhe a boca como os óculos lhe escondem os olhos, as calças demasiado apertadas para parecerem bem nas pernas. Mas toda a gente sabe da sua situação, pode pormenorizar os sofrimentos. Uma brisa fria sopra sobre ele vinda de dentro e ele olha lá para dentro com a metade ainda mais triste da sua dupla cara. Muda-se incessantemente, mas com regularidade previsível, de um apartamento para outro. Quanto mais foge dos vivos, para quem, contudo, e é este o ponto mais cruel, ele tem de trabalhar como um escravo consciente, que não pode revelar a sua consciência, tanto menor é o espaço que consideram bastar-lhe. Enquanto é a morte que irá fazer tombar os outros, mesmo que tenham passado a vida num leito de doente, porque embora eles já há muito tivessem sucumbido por si próprios devido à sua fraqueza,

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Conceitos de Perfeição

Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.

Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita; é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização, senão na essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.
Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida,

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Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Na Casa Defronte

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.

Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada! Não sei…
Um nada que dói…

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No País

no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma – ora aí está –
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma.

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A Coragem da Resignação

A palavra «resignação» não tem boa reputação. Lembra atitude devota, passividade, lágrima ao canto do olho. E todavia, não é isso. Em face dos limites de uma condição, da morte e do nada que vem nela, que outro nome dar à aceitação calma, à fria impassibili­dade? A revolta em tal caso pode falar ao nosso orgulho, à imagem de grandeza que queiramos se tenha de nós. Mas é uma imagem ridícula. Ela responde ainda, não ao reconhecimento do que nos espera, mas a uma notícia recente e não assimilada que disso nos dessem. A coragem não está na atitude espectacular, mas na serena e recolhida e modesta aceitação. Temos assim tendência a julgar herói o que enfrenta a morte com atitudes de grandiosidade, não o que a enfrenta no seu recanto, em silêncio e discrição. Mas o espec­táculo é ainda uma forma de compensar o desastre da morte — é ainda uma forma de uma parcela de nós se recusar a morrer. Quem morre resignado morre todo por inteiro, nada ele assim recusa do que a morte lhe exige.

Sentimento do Tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

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Amigos para Sempre

Os amigos cada vez mais se vêem menos. Parece que era só quando éramos novos, trabalhávamos e bebíamos juntos que nos víamos as vezes que queríamos, sempre diariamente. E, no maior luxo de todos, há muito perdido: porque não tínhamos mais nada para fazer.
Nesta semana, tenho almoçado com amigos meus grandes, que, pela primeira vez nas nossas vidas, não vejo há muitos anos. Cada um começa a falar comigo como se não tivéssemos passado um único dia sem nos vermos.
Nada falha. Tudo dispara como se nos estivera – e está – na massa do sangue: a excitação de contar coisas e partilhar ninharias; as risotas por piadas de há muito repetidas; as promessas de esperanças que estão há que décadas por realizar.
Há grandes amigos que tenho a sorte de ter que insistem na importância da Presença com letra grande. Até agora nunca concordei, achando que a saudade faz pouco do tempo e que o coração é mais sensível à lembrança do que à repetição. Enganei-me. O melhor que os amigos e as amigas têm a fazer é verem-se cada vez que podem. É verdade que, mesmo tendo passado dez anos, sente-se o prazer inencontrável de reencontrar quem se pensava nunca mais encontrar.

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