A Força da Ignorância
Por que causa a ignorância nos mantém agarrados com tanta força? Primeiro, porque não a repelimos com suficiente energia nem usamos todas as nossas forças para nos libertarmos dela; depois, porque não confiamos o bastante nas lições dos sábios nem as interiorizamos como devíamos, antes tratamos uma tão magna questão de forma leviana. Como pode alguém, aliás, aprender suficientemente a lutar contra os vícios se apenas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe deixam livre?…
Nenhum de nós aprofunda bastante esta matéria; abordamos o assunto pela rama e, como gente extremamente ocupada, achamos que dedicar umas horas à filosofia é mais do que suficiente. E o que mais nos prejudica é a facilidade com que o nosso amor próprio se satisfaz. Se encontramos alguém que nos ache homens de bem, homens esclarecidos e irrepreensíveis, logo nos mostramos de acordo! Nem sequer nos contentamos com louvores comedidos: tudo quanto a adulação despudoradamente nos atribui, nós o assumimos como de pleno direito. Se alguém nos declara os melhores e mais sábios do mundo, nós assentimos, mesmo quando sabemos que esse alguém é useiro e vezeiro na mentira! A nossa autocomplacência vai mesmo tão longe que pretendemos ser louvados em nome de princípios que as nossas acções frontalmente desmentem (…) A consequência é que ninguém mostra vontade de corrigir o seu carácter,
Textos sobre Filosofia
104 resultadosA Independência do Homem
Mal podemos acreditar no filósofo a quem tudo deixa indiferente; não acreditamos na tranquilidade do estóico, não desejamos sequer a impavidez, porque a própria condição humana nos lança na paixão e no medo, e são as lágrimas e o júbilo que nos permitem conhecer o que é. Eis por que somente o impulso ascendente nos liberta das perturbações anímicas e não é pela supressão que nos encontramos.
Temos, pois, que nos arriscar a ser homens e, enquanto homens, fazermos o que pudermos para alcançar a independência conquistada. Sofreremos então sem queixume, desesperar-nos-emos sem nos afundarmos, abalados mas nunca completamente derrubados quando suspensos à íntima independência que em nós se gera.
A filosofia, porém, é a escola dessa independência, não a sua posse.
A Herança dos Empresários
Hoje em dia o sector opulento, que é quase unicamente integrado pelos empresários, só ele tem a posição de homens livres. Aos artistas e aos pensadores resta, na maioria dos casos, o recurso a serem integrados no funcionalismo público para salvaguardarem uma relativa decência económica. O empresário não está preparado para se pronunciar como director intelectual da sociedade; a sua filosofia de vida é incoerente e, muitas vezes, suspeita. Deixará uma herança datada, mas não uma obra confidencial para as futuras gerações que irão propagá-la e, com tal, merecer no mundo o seu êxito moral face aos outros povos.
A Estupidez e a Maldade Humana
Vista à distância, a humanidade é uma coisa muito bonita, com uma larga e suculenta história, muita literatura, muita arte, filosofias e religiões em barda, para todos os apetites, ciência que é um regalo, desenvolvimento que não se sabe aonde vai parar, enfim, o Criador tem todas as razões para estar satisfeito e orgulhoso da imaginação de que a si mesmo se dotou. Qualquer observador imparcial reconheceria que nenhum deus de outra galáxia teria feito melhor. Porém, se a olharmos de perto, a humanidade (tu, ele, nós, vós, eles, eu) é, com perdão da grosseira palavra, uma merda. Sim, estou a pensar nos mortos do Ruanda, de Angola, da Bósnia, do Curdistão, do Sudão, do Brasil, de toda a parte, montanhas de mortos, mortos de fome, mortos de miséria, mortos fuzilados, degolados, queimados, estraçalhados, mortos, mortos, mortos. Quantos milhões de pessoas terão acabado assim neste maldito século que está prestes a acabar? (Digo maldito, e foi nele que nasci e vivo…) Por favor, alguém que me faça estas contas, dêem-me um número que sirva para medir, só aproximadamente, bem o sei, a estupidez e a maldade humana. E, já que estão com a mão na calculadora, não se esqueçam de incluir na contagem um homem de 27 anos,
Homens Exageradamente Subtis
Os homens exageradamente subtis raro são grandes homens, e as suas pesquisas são, na maior parte dos casos, tão inúteis como requintadas. Afastam-se cada vez mais da vida prática, de que se deveriam aproximar. Assim como os mestres de dança ou de esgrima não começam por ensinar a anatomia dos braços e das pernas, também uma filosofia sã e utilizável deve partir de muito mais alto do que todas as suas especulações. «Deve pôr-se o pé assim para se não cair» e «é necessário acreditar nisto pois seria absurdo não acreditar», constituem bases muito boas.
As pessoas que quiserem ir mais longe podem fazê-lo, mas sem pensarem que fazem algo de grande, porque se tudo resultar, nada mais encontrarão, no fim de contas, do que aquilo que o homem razoável sabia há muito.
O homem que faz uma nova demonstração do décimo segundo teorema de Euclides merece ser chamado engenhoso, mas nem por isso contribuirá mais para o alargamento das fronteiras da ciência do que se não tivesse feito tal invenção. Mas nunca, por certo, chegareis a convencer o céptico, porque que argumento deste mundo será capaz de convencer um homem capaz de acreditar em absurdidades? E alguém que quer ser convencido merecerá ser refutado?
É Possível Estarmos Todos Errados?
É possível (…) que não se tenha visto, conhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milénios para olhar, reflectir e anotar e que se tenha deixado passar os milénios como uma pausa escolar, durante a qual se come fatias de pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que, apesar das investigações e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na superfície da vida? É possível que até se tenha coberto essa superfície – que, apesar de tudo, seria qualquer coisa – com um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se assemelhe aos móveis da sala durante as férias de Verão?
Sim, é possível.
É possível que toda a História Universal tenha sido mal-entendida? É possível que o passado seja falso, precisamente porque sempre se falou das suas multidões, como se dissertasse sobre uma aglomeração de pessoas, em vez de falar de uma única, em torno da qual elas estavam, porque se tratava de um desconhecido que morreu?
Sim, é possível.
É possível que se tenha julgado ser preciso recuperar o que aconteceu antes de se ter nascido?
Poesia e Verdade
De facto, entre a poesia e a verdade existe uma natural oposição: falsa moral e natureza fictícia. O poeta sempre necessita de algo falso. Quando ele pretende fincar os seus fundamentos na verdade, o ornamento da sua superestrutura é feito de ficções; a sua acção consiste em estimular as nossas paixões e excitar os nossos preconceitos. A verdade, a exactidão de todo o tipo, é fatal à poesia. O poeta tem de olhar tudo através de meios coloridos e esforça-se a levar cada pessoa a fazer o mesmo. Existem espíritos nobres, é verdade, com os quais a poesia e a filosofia estão igualmente em dívida, mas essas excepções não contrabalançam os danos resultantes dessa arte mágica.
Saber Ler um Poema
– O poema está então centrado em si mesmo, monstruosamente solitário?
– Não tem pressa, pode bem esperar que o arranquem da sua solidão, possui forças expansivas bastantes, façam-no sair dali. Mas ou levam-no inteiro com o centro no centro e armado à vo]ta como um corpo vivo ou não levam nada, nem um fragmento. E o que muitas vezes se faz é contrabandear bocados: leva-se a parte errada dele na parte errada de nós para qualquer parte errada: filosofia, moral, politica, psicanálise, linguística, simbologia, literatura. Onde estão o corpo e a vida dele e a sua integridade? Onde, a solidão para escutar a solidão daquela voz? Porque é obrigatório dizé-lo: pouca gente tem ouvidos puros. Ou mãos limpas. Ler um poema é poder fazê-lo, refazê-lo: eis o espelho, o mágico objecto do reconhecimento, o objecto activo de criação do rosto. O eco visual se quanto a rostos fosse apenas lê-los fora e ver. Porque o mostrado e o visto são a totalidade daquilo que se mostra e vê — o nome: a revelação.
— Não é um destino assegurado.
— Só é seguro que a pergunta, a procura, o poema reincidente, cristalizam numa grande massa translúcida,
A Importância de Dostoievski na Literatura
Os dois grandes monumentos do romance que o século passado (XIX) nos legou, ou seja aqueles em que poderemos reconhecer-nos, foram os erguidos por Tolstoi e por Dostoievski. Mas se a lição do primeiro foi facilmente assimilada, a do segundo levou tempo – e tanto, que só hoje acabámos de entendê-la bem. Significa isto que Tolstoi, com incidências menores de moralização, continua um Balzac, é bem do século XIX. E foi por se pretender à força ligar a esse século também um Dostoievski que ele só tarde se nos revelou, para dominar ainda hoje, diga-se o que se disser, todo o romance europeu. Para usar uma expressão que já usei, não com inteira originalidade, e a que a crítica me ligou, direi que Tolstoi continua o romance-espectáculo e que Dostoievski inaugura o romance-problema.
Dir-se-ia, e com razão, que todo o romance é problema e espectáculo, já que o espectáculo resiste num romance de Kafka ou Dostoievski, e o problema implicita-se numa qualquer narrativa, nem que seja o Amadis de Gaula. Mas é tão visível a deslocação do acento na obra de Dostoievski, que ela foi defendida, para existir, pelo que lhe é inessencial (como por um Brunetière e recentemente um Ernst Fischer,
O Âmago da Virtude
Haverá filósofos que pretendem induzir-nos a dar grande valor à prudência, a praticarmos a virtude da coragem, a nos aplicarmos à justiça — se for possível — com maior empenho ainda do que às restantes virtudes. Pois bem: de nada servirão estes conselhos se nós ignorarmos o que é a virtude, se ela é una ou múltipla, se as virtudes são individualizadas ou interdependentes, se quem possui uma virtude possui também as restantes ou não, qual a diferença que existe entre elas. Um operário não precisa de investigar qual a origem ou a utilidade do seu trabalho, tal como o bailarino o não tem que fazer quanto à arte da dança: os conhecimentos relativos a todas estas artes estão circunscritos a elas mesmas, porquanto elas não têm incidência sobre a totalidade da vida. A virtude, porém, implica tanto o conhecimento dela própria como o de tudo o mais; para aprendermos a virtude temos de começar por aprender o que ela é. Uma acção não pode ser correcta se não for correcta a vontade, pois é desta que provém a acção. Também a vontade nunca será correcta se não for correcto o carácter, porquanto é deste que provém a vontade. Finalmente,
Moral Vazia
O que nós chamamos a moral não passa de um empreendimento desesperado dos nossos semelhantes contra a ordem universal, que é a luta, a carnificina e o jogo cego de forças contrárias.
(…) Cada época tem a sua moral dominante, que não resulta nem da religião nem da filosofia, mas do hábito, única força capaz de reunir os homens num mesmo sentimento, pois tudo o que é sujeito ao raciocínio divide-os; e a humanidade só subsiste com a condição de não reflectir sobre aquilo que é essencial para a sua existência.
(…) A moral é a ciência dos costumes, e com eles muda. Ela difere de país para país e em nenhum lugar permanece a mesma no espaço de dez anos.
A Ingenuidade Ignorante e a Ingenuidade Sábia
Há duas espécies de ingenuidade: uma que ainda não percebeu todos os problemas e ainda não bateu a todas as portas do conhecimento; e outra, de uma espécie mais elevada, que resulta da filosofia que, tendo olhado dentro de todos os problemas e procurado orientação em todas as esferas do conhecimento, chegou à conclusão de que não podemos explicar nada, mas temos de seguir as convicções cujo valor inerente nos fala de maneira irresístivel.
O Ideal é a Vida
A nossa vida sem ideais nenhuns, toda quotidiana, quer no presente quer pelo pensamento do futuro. Perdendo a religião, nada reavemos para a substituir; nem arte, porque a arte é, como religião, para muito poucos; nem ciência, que é para menos ainda, nem filosofia, que é para quase nenhuns.
Não me refiro à conducta mas a ideais. Uma sociedade nunca pode ser grande nem pura sem ideais, porque na moral que nasce, na moral para uso quotidiano e de quotidiana origem, caberá uma certa decência, uma honestidade, razoáveis instintos humanitários, mas não uma nobreza de qualquer espécie, não uma grandeza de carácter. E o ponto importante é este. O ideal é a vida; vamos perdendo o ideal, e a nossa vitalidade vai diminuindo tristemente.
Somos Irracionais
No meu tempo de escola primária, algumas crédulas e ingénuas pessoas, a quem dávamos o respeitoso nome de mestres, ensinaram-me que o homem, além de ser um animal racional, era, também, por graça particular de Deus, o único que de tal fortuna se podia gabar. Ora, sendo as primeiras lições aquelas que mais perduram no nosso espírito, ainda que, muitas vezes, ao longo da vida, julguemos tê-las esquecido, vivi durante muitos anos aferrado à crença de que, apesar de umas tantas contrariedades e contradições, esta espécie de que faço parte usava a cabeça como aposento e escritório da razão. Certo era que o pintor Goya, surdo e sábio, me protestava que é no sono dela que se engendram os monstros, mas eu argumentava que, não podendo ser negado o surgimento dessas avantesmas, tal só acontecia quando a razão, pobrezinha, cansada da obrigação de ser razonável, se deixava vencer pela fadiga e mergulhava no esquecimento de si própria. Chegado agora a estes dias, os meus e os do mundo, vejo-me diante de duas probabilidades: ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é, também indubitavelmente, o mais irracional de todos eles.
A Filosofia é Essencial para Compreender a Vida
Bem longe de se assustar ou mesmo de enrubescer com o nome de filósofo, não existe ninguém no mundo que não devesse possuir fortes laivos de filosofia. Ela convém a todos; a sua prática é útil em todas as idades, para todos os sexos e para todas as condições: ela consola-nos da felicidade do outro, das preferências indignas, dos fracassos, do declínio das nossas forças ou da nossa beleza; arma-nos contra a pobreza, a velhice, a doença e a morte, contra os tolos e os maus zombeteiros; faz-nos viver sem uma mulher ou faz-nos suportar aquela com quem vivemos!
Depender de Alguém
Depender de alguém, das ideias dos outros ou das filosofias das massas é negar a nossa própria existência, é abdicar totalmente do poder que nos foi concedido à nascença e a mais profunda ingratidão para com a oportunidade que nos foi dada de aqui estar. Como já o disse, cada um de nós é um ser especial e precioso, com responsabilidades pessoais e sociais diferentes de todos os outros. Cada um de nós pode fazer a diferença.
Quantas vezes já deixaste de arriscar porque não to permitiram? Quantas vezes já sonhaste com algo diferente daquilo que te foi imposto ou ensinado e por isso desististe? Quantas vezes foste feliz por depender de algo ou alguém?
Muitas pessoas optam, conscientemente, pela dependência por acharem que a vida se torna mais fácil nesse estado de submissão. Na verdade não lhes é exigido que lutem por nada, por ninguém e, muito menos, por elas. Agora, pergunto eu, que interesse é que isto tem? Esta gente, apesar de respirar e dar ares da sua graça, já morreu e só anda aqui a fazer figura de corpo presente, pois as suas vidas já não são desafiantes. Ser dependente é ter medo de assumir o risco das suas paixões,
A Necessidade da Filosofia
A filosofia não brota por ser útil, mas tão-pouco pela acção irracional de um desejo veemente. É constitutivamente necessária ao intelectual. Porquê? A sua nota radical era buscar o todo como um tal todo, capturar o Universo, caçar o Unicórnio. Mas porquê esse profundo anseio? Por que não nos contentamos com o que, sem filosofar, achamos no mundo, com o que já é e aí está patente diante de nós? Por esta simples razão: tudo o que é e está aí, quanto nos é dado, presente, patente, é por sua essência um mero bocado, pedaço, fragmento, coto. E não podemos vê-lo sem prever e verificar que está a menos a porção que falta. Em todo o ser que é dado, em todo o dado do mundo encontramos a sua essencial linha de fractura, o seu carácter de parte e só parte – vemos a ferida da sua mutilação ontológica, grita-nos a sua dor de amputado, a sua nostalgia do bocado que lhe falta para ser completo, o seu divino descontentamento. Há doze anos, quando eu falava em Buenos Aires, definia o descontentamento «como um amar sem amado e uma como dor que sentimos em membros que não temos». É o achar de menos o que não somos,
A Convicção é Sempre Cega
O intelecto humano, quando assente numa convicção (ou por já bem aceite e acreditada porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez:«E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?» Essa é a base de praticamente toda a superstição, trate-se de astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha – o que é bem mais frequente – negligenciam-nos e passam adiante.
Esse mal insinua-se de maneira muito mais subtil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceite tudo impregna e reduz o que se segue, até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a que nos referimos,
O Perigo nas Relações Humanas
Nas relações humanas o perigo é coisa de todos os dias. Deves precaver-te bem contra este perigo, deves estar sempre de olhos bem abertos: não há nenhum outro tão frequente, tão constante, tão enganador! A tempestade ameaça antes de rebentar, os edifícios estalam antes de cair por terra, o fumo anuncia o incêndio próximo: o mal causado pelo homem é súbito e disfarça-se com tanto mais cuidado quanto mais próximo está. Fazes mal em confiar na aparência das pessoas que se te dirigem: têm rosto humano, mas instintos de feras. Só que nestas apenas o ataque directo é perigoso; se nos passam adiante não voltam atrás à nossa procura. Aliás, somente a necessidade as instiga a fazer mal; a fome ou o medo é que as forçam a lutar. O homem, esse, destrói o seu semelhante por prazer. Tu, contudo, pensando embora nos perigos que te podem vir do homem, pensa também nos teus deveres enquanto homem. Evita, por um lado, que te façam mal, evita, por outro, que faças tu mal a alguém. Alegra-te com a satisfação dos outros, comove-te com os seus dissabores, nunca te esqueças dos serviços que deves prestar, nem dos perigos a evitar. Que ganharás tu vivendo segundo esta norma?
A Verdade é Amor
A verdade é amor — escrevi um dia. Porque toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pôde esquecer. É esse equilíbrio interno que diz ao pintor que tal azul ou vermelho estão certos na composição de um quadro. É o mesmo equilíbrio indizível que ao filósofo impõe a verdade para a sua filosofia. Porque a filosofia é um excesso da arte. Ela acrescenta em razões ou explicações o que lhe impôs esse equilíbrio, resolvido noutros num poema, num quadro ou noutra forma de se ser artista. Assim o que exprime o nosso equilíbrio interior, gerado no impensável ou impensado de nós, é um sentimento estético, um modo de sermos em sensibilidade, antes de o sermos em. razão ou mesmo em inteligência. Porque só se entende o que se entende connosco, ou seja, como no amor, quando se está «feito um para o outro». Só entra em harmonia connosco o que o nosso equilíbrio consente. E só o consente, se o amar. Porque mesmo a verdade dos outros — a política, por exemplo — se temos improvavelmente de a reconhecer, reconhecemo-la talvez no ódio, que é a outra face do amor e se organiza ainda na sensibilidade.