Passagens de Vergílio Ferreira

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Frases, pensamentos e outras passagens de Vergílio Ferreira para ler e compartilhar. Os melhores escritores estão em Poetris.

O que o moralista mais odeia nos pecados dos outros é a suspeita acusação de cobardia por não ter coragem de os cometer.

A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, é já problemático haver pátria que chegue para os dois.

Os grandes sistemas do pensar, da ciência, as grandes correntes literárias e artísticas, os grandes ideários políticos ou religiosos. Tudo passou. Restos detritos fragmentos. Toma o teu bocado e senta-te no vão de uma porta a comê-lo.

O Que Procuro na Literatura

Que é que eu procuro na literatura? Que é que me arrasta para este combate interminável e sempre votado ao fracasso? Como é imbecil pensar-se que se escreve para se «ter nome» e as vantagens que nisso vêm. Espera-se decerto sempre fazer melhor, mas só porque sempre se falhou. Assim se sabe também que se vai falhar de novo. Não se escreve para ninguém, o problema decide-se apenas entre nós e nós. Mas há um lugar inatingível e cada nova tentativa é uma tentativa para o alcançar.
O desejo que nos anima é o de fixar, segurar pela palavra o que entrevemos e se nos furta. Julgamos às vezes que o atingimos, mas logo se sabe que não. Miragem perene de uma presença luminosa, de um absoluto de estarmos inundados dessa evidência, encantamento que nos deslumbra no instante e nesse instante se dissolve.
O que me arrasta nesta luta sem fim é o aceno de uma plenitude de ser, a integração perfeita do que sou no milagre que me entreluz, a transfiguração de mim e do mundo no que fulgura e vai morrer.
Recaído de cada vez no mais baixo, na grossa naturalidade de que sou feito,

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Que Há para Lá do Sonhar?

Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?

Ser Livre

É mais difícil ser livre do que puxar a uma carroça. Isto é tão evidente que receio ofender-vos. Porque puxar uma carroça é ser puxado por ela pela razão de haver ordens para puxar, ou haver carroça para ser puxada. Ou ser mesmo um passatempo passar o tempo puxando. Mas ser livre é inventar a razão de tudo sem haver absolutamente razão nenhuma para nada. É ser senhor total de si quando se é senhoreado. É darmo-nos inteiramente sem nos darmos absolutamente nada. É ser-se o mesmo, sendo-se outro. É ser-se sem se ser. Assim, pois, tudo é complicado outra vez. É mesmo possível que sofra aqui e ali de um pouco de engasgamento. Mas só a estupidez se não engasga, ó meritíssimos, na sua forma de ser quadrúpede, como vós o deveis saber.

Não é o problema que nos fascina mas o mistério. Porque não nos fascina o que tem resolução mas o que a não pode ter. E para o homem só o que é demais é que é bastante.

Atenção. Já o devo ter dito, mas não há mal em repetir: O «estilo» não é da ordem do enfeite mas da operacionalidade.

A imagem de um intelectual, mormente de um escritor, não está bem nos livros que lê mas naqueles que relê. A leitura revela aquele que deseja ser; a releitura, aquele que é.

A «firmeza de princípios», de «opiniões», pode ser uma forma vistosa de camuflar a estupidez. Ser inteligente é ser disponível.

O autodidacta é um novo-rico. Sabe as coisas, mas não sabe como usá-las. Normalmente usa-as ao peito, que é onde supõe que apenas são visíveis. Mas onde elas se vêem não é onde se vêem.

A Dádiva da Evidência de Si

Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos.

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