Caminhos
Para quê, caminhos do mundo,
Me atraís? — Se eu sei bem já
Que voltarei donde parto,
Por qualquer lado que vá.Pra quê? — Se a Terra é redonda;
E, sempre, tem de cumprir-se
A sina daquela onda
Que parece vai sumir-se,Mas que volta, bem mais débil,
Ao meio do lago, onde
A mãe, gota d’água flébil,
Há muito tempo se esconde.Pra quê? — Se a folha viçosa
Na Primavera, feliz,
Amanhã será, gostosa,
Alimento da raiz.Pra quê, caminhos do mundo?
Pra quê, andanças sem Fim?
Se todo o sonho profundo
Deste Mundo e do Outro-Mundo,
Não ‘stá neles, mas em mim.
Interrogativos
2230 resultadosAlimentar o Amor
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão.
Tudo o que Somos é Ficção
Há que entender que tudo o que somos é ficção.
Pessoas atrás de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguém especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, até o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E é por isso que escrevo. Escrever é estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever é procurar a esperança, todos os dias, no que não existe, no que se escreve para ver se existe. Não sou escritor, nunca fui escritor, não quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgência qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biológica, e às vezes custa tanto ter de escrever. Não dói mas custa, é uma dor de fora para dentro, como se as letras saíssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios é a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. Não quero escrever literatura, não quero os intelectuais do meu lado.
Vai a Fresca Manhã Alvorecendo
Vai a fresca manhã alvorecendo,
vão os bosques as aves acordando,
vai-se o Sol mansamente levantando
e o mundo à vista dele renascendo.Veio a noite os objectos desfazendo
e nas sombras foi todos sepultando;
eu, desperta, o meu fado lamentando.
fui coa ausência da luz esmorecendo.Neste espaço, em que dorme a Natureza.
porque vigio assim tão cruelmente?
Porque me abafa ó peso da tristeza?Ah, que as mágoas que sofre o descontente,
as mais delas são faltas de firmeza.
Torna a alentar-te, ó Sol resplandecente!
Se até as coisas mínimas ultrapassam o vosso poder, porquê preocupar-vos com as outras
Se até as coisas mínimas ultrapassam o vosso poder, porquê preocupar-vos com as outras?
Dizei, Senhora, Da Beleza Ideia:
Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
para fazerdes esse áureo crino,
onde fostes buscar esse ouro fino?
de que escondida mina ou de que veia?Dos vossos olhos essa luz Febeia,
esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
se com encantamentos de Medeia?De que escondidas conchas escolhestes
as perlas preciosas orientais
que, falando, mostrais no doce riso?Pois vos formastes tal, como quisestes,
vigiai-vos de vós, não vos vejais,
fugi das fontes: lembre-vos Narciso.
Caminho Monótono
E por que hei de negar?…Ah! o encanto da estrada
abrindo em cada curva um leque de paisagem,
e o mistério da casa escondida e encantada
que mora sob a sombra amiga da folhagemE por que hei de negar? Se isso é a vida passada;
se o fastio espantou o encanto da miragem
Hoje – o olhar distraído, e a alma já cansada
repetem todo dia e sempre a mesma viagemE por que hei de negar? Ah! Aquelas ânsias loucas
dos beijos que cantavam sempre em nossas bocas
e das mãos, não sabendo nunca onde pousar…Hoje… por mais que venhas, sempre estou sozinho…
E por que hei de negar? Se teu corpo é um caminho
onde de olhos fechados posso caminhar?…
No Mar em que de Novo Amor me Guia
No mar em que de novo amor me guia,
O mais seguro porto é dar à costa;
Aonde todos se perdem, aí está posta
Minha salvação, aí me salvaria.Só fé me há-de salvar nesta porfia
Do vento, que contrário vem de aposta;
E pois sua mor perda é dar à costa
Comigo, eu com Costa me queria.Que vai já o querer, aonde a ventura
Criou tão desigual merecimento?
Valha-me pura fé, vontade pura!Valha-me navegar meu pensamento
Com tal estrela, cuja formosura
Abranda o duro mar de meu tormento.
A Ilusão da Cultura Presente
Como é que tens a ilusão de que a tua Cultura é que é? De que a Arte que realizaste, e a Filosofia que pensas, e a História que concebes, e a Ciência que revelaste ou propuseste, e a Política que queres impor, e a Moral que vais pregando, e as relações familiares que estabeleceste, e tudo o mais em que foste homem, são o limite de uma procura, e te sentas nele, e ris dos que te precederam com o teu riso canino da tua boca de esguelha?
Dentro em pouco alguém te retirará de dentro desse riso para ficar lá só o riso e se meter nele depois. E virá um dia a altura de esse alguém sair também desse riso para outro se instalar nele por sua vez. Até que o último riso a ficar seja enfim o da caveira.
Visão Realizada
Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: “Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?”“Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.”Disse; e eu dando um suspiro: “Ah, não m’espantes
Coa a vista dessa fúria!… Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!”Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!
A Ignorância leva ao Impulso sem Sentido
A ignorância é uma coisa vil, abjecta, indigna, servil, sujeita a inúmeras e violentíssimas paixões. Destes insuportáveis tiranos que são as paixões – e que por ora nos governam alternadamente, ora em conjunto – te libertará a sabedoria, a única liberdade autêntica. Para chegar à sabedoria, um só caminho e em linha recta; não há que errar, avança em passo firme e constante. Se queres que tudo te esteja sujeito, sujeita-te tu à razão; dirigirás muitos outros, se a ti te dirigir a razão. Ela te dirá o que deves empreender, e que maneira; assim não serás surpreendido pelos acontecimentos. Tu não podes apontar-me alguém que saiba de que modo começou a querer aquilo que quer. E porquê? Porque o comum das pessoas não é levada pela reflexão, mas arrastada por impulsos. A fortuna cai sobre nós não menos vezes do que nós caimos sobre ela.
Soneto 399 Pós-Moderno
Cinema Novo, Bossa Nova, tudo
é novo nesta terra! A velharia
nos vem só do estrangeiro. O que seria
do Chaplin sem o velho cine mudo?Temos tempos modernos! Também mudo
meu modo de pensar a poesia.
Concreto e verso livre contagia,
mas algo mais à frente aguarda estudo:É o raio do soneto, que ora volta
liberto das amarras do conceito
e sem as igrejinhas como escolta.Depois do modernismo, vem refeito.
Até o vocabulário já se solta:
ao puro é duro, e ao sujo está sujeito.
A Verdade Universal Não Existe
Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei as suas diversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos – mesmo no seu pretenso cepticismo -, não ignorando nada, não demonstrando nada, troçando uns dos outros; e esse ponto, que é comum a todos eles, pareceu-me ser o único em que todos concordavam. Triunfantes quando atacam, não têm vigor quando se defendem. Se examinais as suas razões, só as têm para destruir; se contais os seus caminhos, cada um está limitado ao seu; só se põem de acordo para discutir; prestar-lhes ouvidos não era o meio de me livrar da minha incerteza. Compreendi que a insuficiência do espírito humano é a primeira causa dessa prodigiosa diversidade de sentimentos, e que o orgulho é a segunda.
Nós não temos a medida dessa imensa máquina, não podemos calcular as suas proporções; não lhe conhecemos nem as primeiras leis nem a causa final; ignoramo-nos a nós mesmos; não conhecemos nem a nossa natureza nem o nosso princípio activo; mal sabemos se o homem é um ser simples ou composto: mistérios impenetráveis rodeiam-nos por todos os lados; pairam por cima da região sensível; para os compreendermos, supomos ter inteligência, e apenas temos imaginação. Cada um de nós abre através desse mundo imaginário –
Alma e Corpo
Uma alma que conhece o seu próprio corpo, o mundo e Deus não pode aceitar que ela empurre o corpo como um dedo empurra uma engrenagem, nem ver-se alojada no corpo como um piloto invisível. Se bem pensarmos no caso, há uma contradição ridícula em encerrar a alma no corpo, nesse mesmo corpo que ela conhece limitado e rodeado por tantas outras coisas. E como é que aquilo que encerra antecipadamente todos os lugares possíveis, que os compara, para quem o longe e o perto estão juntos, quer dizer, em relação, que jamais separa sem unir, que não pode pensar nada fora de si sem o pensar por isso mesmo em si, que não conhece o limite senão ultrapassado, que é, finalmente, o todo de tudo, e mesmo até o todo dos possíveis, como é que esse árbitro universal pode estar prisioneiro em uma parte e aí limitado? Aí ligado, sim: o que não é a mesma coisa.
Procurar o Sonho é Procurar a Verdade
A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas. A verdade? É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha? De quê?
Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única verdade para mim, sou eu próprio. Isolar-se tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.
Fuga do Ódio
Queres amar a vida e não te deixam. Tens de respirar o ódio, o insulto, o bafo azedo do vexame e isso faz-te mal. Emanações de um pântano de febres, de esgotos a céu aberto com o seu fedor de vómito. Um dos tormentos do inferno medievo era esse, o fedor – a essência da podridão. E o que te fazem respirar de uma flor, do aroma de existires? Porque é que o ódio é assim fundamental para os teus parceiros em humanidade existirem? Têm uma estrutura diferente de serem, Deus fabricou-os num momento de mau génio.
Auto-Retrato
O’Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada…)No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras milque são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…
O Amor Antigo
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.Se em toda a parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
Doente
Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d’olhar cálido…
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: – coitado, está por pouco!…Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço…Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar…São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Louvor do Aprender
Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c’os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.Tradução de Paulo Quintela