Passagens de Mário de Sá-Carneiro

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Frases, pensamentos e outras passagens de Mário de Sá-Carneiro para ler e compartilhar. Os melhores escritores estão em Poetris.

Ăšltimo Soneto

Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste…
– Se me dĂłi hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi…

Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tĂ©dio que, tĂŁo esbelta, te curvava…

E fugiste… Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?…

O Recreio

Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar –
Balouço à beira dum poço,
Bem difĂ­cil de montar…

– E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar…

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada…

– Cá por mim nĂŁo mudo a corda,
Seria grande estopada…

Se o indez morre, deixá-lo…
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca… Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive…

– Mudar a corda era fácil…
Tal ideia nunca tive…

A Noite de Natal

Era a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.

VĂŁo-se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente Ă s dez horas
Adormecem inocentes.

Perguntam logo Ă  criada
Quando acorde de manhĂŁ
Se Jesus lhes nĂŁo deu nada.

– Deu-lhes sim, muitos bonitos.
– Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.

Cumpridos dez anos de prisĂŁo por um crime que nĂŁo pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos… nada podendo já esperar e coisa alguma desejando – eu venho fazer enfim a minha confissĂŁo: isto Ă©, demonstrar a minha inocĂŞncia.

Vontade de Dormir

Fios d’ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira –
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte…

. . . . . . . . . . . . . . .

– Ai que saudade da morte…

. . . . . . . . . . . . . . .

Quero dormir… ancorar…

. . . . . . . . . . . . . . .

Arranquem-me esta grandeza!
– Pra que me sonha a beleza,
Se a nĂŁo posso transmigrar?…

Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as nĂŁo ter e de nunca vir a tĂŞ-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, emfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei Ă  dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A propria maravilha tinha cĂ´r!

Ecoando-me em silĂŞncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu prĂłprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tedio.

E sĂł me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…

Quási

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era alĂ©m.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse Ă quem…

Assombro ou paz? Em vĂŁo… Tudo esvaĂ­do
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – Ăł dĂ´r! – quási vivido…

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princĂ­pio e o fim – quási a expansĂŁo…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi sĂł ilusĂŁo!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dĂ´r de ser-quási, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas nĂŁo voou…

Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ansias que foram mas que nĂŁo fixei…

Se me vagueio, encontro sĂł indicios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sĂ´bre os precipĂ­cios…

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O amor

MOTE

Amor Ă© chama que mata,
Sorriso que desfalece,
Madeixa que desata,
Perfume que esvaece.

(popular)

GLOSAS

Amor Ă© chama que mata,
Dizem todos com razĂŁo,
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor Ă© um sorriso
Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata
Denominam-no também.
O amor nĂŁo Ă© um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor Ă© um perfume
Perfume que se esvaece.

Vislumbre

A horas flĂ©beis, outonais –
Por magoados fins de dia –
A minha Alma é água fria
Em ânforas d’Ouro… entre cristais…

A Impossibilidade de Renunciar

Eu decido correr a uma provável desilusĂŁo: e uma manhĂŁ recebo na alma mais uma vergastada – prova real dessa desilusĂŁo. Era o momento de recuar. Mas eu nĂŁo recuo. Sei já, positivamente sei, que sĂł há ruĂ­nas no termo do beco, e continuo a correr para ele atĂ© que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saĂ­da. E vocĂŞ nĂŁo imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!… Há na minha vida um bem lamnetável episĂłdio que sĂł se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas nĂŁo era, nĂŁo era. É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebĂŞ-lo atĂ© ao fim. Porque – coisa estranha! – sofro menos esgotando-o atĂ© Ă  Ăşltima gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vĂŁo atĂ© ao fim. Esta impossibilidade de renĂşncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida Ă© uma triste coisa. Os actos da minha existĂŞncia Ă­ntima, um deles quase trágico, sĂŁo resultantes directos desse triste fardo. E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguĂ©m as compreende.

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DispersĂŁo

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…

Para mim Ă© sempre ontem,
NĂŁo tenho amanhĂŁ nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo Ă© familia,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
NĂŁo tĂŞm bem-estar nem familia).

O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traĂ­u a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho,

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Torniquete

A tĂ´mbola anda depressa,
Nem sei quando irá parar –
Aonde, pouco me importa;
O importante Ă© que pare…
– A minha vida nĂŁo cessa
De ser sempre a mesma porta
Eternamente a abanar…

Abriu-se agora o salĂŁo
Onde há gente a conversar.
Entrei sem hesitação –
Somente o que se vai dar?
A meio da reuniĂŁo,
Pela certa disparato,
Volvo a mim a todo o pano:

Ă€s cambalhotas desato,
E salto sobre o piano…
– Vai ser bonita a função!
Esfrangalho as partituras,
Quebro toda a caqueirada,
Arrebento Ă  gargalhada,
E fujo pelo saguĂŁo…

Meses depois, as gazetas
DarĂŁo crĂ­ticas completas,
Indecentes e patetas,
Da minha Ăşltima obra…
E eu – prĂ  cama outra vez,
Curtindo febre e revés,
Tocado de Estrela e Cobra…

As Coisas Secretas da Alma

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo Ă© guardado atĂ© Ă  morte delas. E sĂŁo guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angĂşstia, em face dos amigos mais queridos – porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridĂ­culas, mesquinhas, incompreensĂ­veis ao mais perspicaz. Estas coisas sĂŁo materialmente impossĂ­veis de serem ditas. A prĂłpria Natureza as encerrou – nĂŁo permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir – apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha sĂŁo as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nĂłs, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive – nĂŁo existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente – Ăł ideal dos amorosos! – eu tenho a certeza que se fundiriam numa sĂł. E os corpos morreriam.

Campainhada

As duas ou trĂŞs vezes que me abriram
A porta do salão onde está gente,
Eu entrei, triste de mim, contente –
E Ă  entrada sempre me sorriram…

Apoteose

Mastros quebrados, singro num mar d’Ouro
Dormindo fĂ´go, incerto, longemente…
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje sĂł mĂłro…

SĂŁo tristezas de bronze as que inda choro –
Pilastras mortas, marmores ao Poente…
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca Ăłro…

Desci de mim. Dobrei o manto d’Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro…

Findei… Horas-platina… Olor-brocado…
Luar-ânsia… Luz-perdĂŁo… Orquideas pranto…

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

– Ă“ pantanos de Mim – jardim estagnado…

Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me Ă s vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh’alma nostálgica de alĂ©m,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a fôrça de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que sĂŁo para o artista? Coisa alguma.
O que devemos Ă© saltar na bruma,
Correr no azul á busca da beleza.

É subir, é subir àlem dos céus
Que as nossas almas sĂł acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d’irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d’alma ampliada,

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Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois Ă© assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de RĂşssias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha sĂł pelĂşcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
LĂŞ o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim Ă© um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichĂŁo que nĂŁo passa.

Folhetim da “Capital”
Pelo nosso JĂşlio Dantas –
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…

Isto assim nĂŁo pode ser…
Mas como achar um remédio?

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