Textos sobre Horas

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Textos de horas escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Jogar à Bola na Rua

– É triste, sabes? As crianças, hoje em dia, mesmo as mais dadas a jogos de computador e sei lá mais o quê, alimentam-se melhor, fazem mais exercício, têm físicos mais equilibrados. Para além de tudo, sabem fazer uma triangulação, percebem com toda a facilidade como se joga em quatro-quatro-dois e em quatro-três-três, acorrem a um pontapé de canto e cumprem a coreografia toda, dançando na grande área como os profissionais. Só que, depois, não têm intimidade com a bola. Não conhecem as suas manias, os movimentos mais imprevistos do seu comportamento, os seus amuos. E só os conheceriam se jogassem à bola na rua. Se jogassem à bola seis ou sete ou oito horas por dia, como nós chegávamos a jogar. Se fossem ao dentista arrancar um dente e, mesmo assim, precisassem de levar uma bola debaixo do braço, para ocupar os tempos mortos.

A Causa da Vontade

A nossa vida não passaria de uma série de caprichos, se a nossa vontade se determinasse por si mesma e sem motivos. Não temos vontade que não seja produzida por alguma reflexão ou por alguma paixão. Quando levanto a mão, é para fazer uma experiência com a minha liberdade ou por alguma outra razão. Quando me propõem um jogo de escolha entre par ou ímpar, durante o tempo em que as ideias de um e de outro se sucedem no meu espírito com rapidez, mescladas de esperança e temor, se escolho par, é porque a necessidade de fazer uma escolha se apresenta ao meu pensamento no momento em que par está aí presente. Proponha-se o exemplo que se quiser, demonstrarei a qualquer homem de boa-fé que não temos nenhuma vontade que não seja precedida por algum sentimento ou por algum arrazoado que a faz nascer. É verdade que a vontade tem também o poder de excitar as nossas ideias; mas é necessário que ela própria seja antes determinada por alguma causa.
A vontade não é nunca o primeiro princípio das nossas acções, ela é o seu último móbil; é o ponteiro que marca as horas num relógio e que o leva a dar as pancadas sonoras.

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A Monotonia

Nos grandes momentos todos são heróis; tem-se sempre a ideia, embora vaga, de que se está representando e que o papel se deverá desempenhar com perfeição; de outro modo não aplaude o público. Depois as epopeias duram pouco; todas as forças se podem concentrar, faz-se um apelo supremo à suprema energia; em seguida permite-se o descanso, a mediocridade que apazigua e repousa; nada mais vulgar do que um herói fora do seu teatro.
Não é, pois, necessário que te prepares para as crises; são horas em que sempre – se não és totalmente apagado – te encontrarás acima de ti próprio; mil elementos te farão pedestal; tão alto subirás que só te será difícil, passada a exaltação, não te admirares do que fizeste; vês-te incapaz de repetir o golpe; e para a fama do herói certamente contribui este espanto que o toma de se não ter sempre igual, de em determinada conjuntura ter passado sobre ele o apelo dos deuses.
É para todos os dias que precisas de educar e afinar a alma; é para te sentires o mesmo em todos os minutos que deves dominar os impulsos e ser obstinadamente calmo ante as dificuldades e os perigos,

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É Preciso Viver-se com Paixão

A paixão é o mote, a ausência dela é a morte. A paixão é o sentido e os sentidos, a ausência dela é o inadmitido e os proibidos. A paixão é, a ausência dela não. Já te questionaste, por exemplo, sobre a relação amorosa que tens ou sobre as relações fugazes que vais tendo? Encontras pontos de paixão recentes na primeira? Justificas a segunda pelos sismos de emoções que experiencias?
Se na primeira a tua resposta tiver sido «Sim», quero que saibas que fico muito orgulhoso de ti, tanto quanto o tempo que já levas de relação, pois revelas uma enorme sede de viver.
Se a tua resposta tiver sido um redondo «Não», pergunto-te eu: o que é que ainda estás a fazer com essa pessoa?
Na minha vida, sempre que a paixão desaparece eu mudo. Mudo de pessoas, mudo de trabalho, mudo de lugar, mudo de “hobbie”, mudo tudo. É preciso viver-se com paixão, pois não se vive de outra forma. Seguindo o exemplo que te estava a dar, todas as minhas relações acabaram quando a paixão findou. Não faço fretes, não posso ter medo de magoar a outra pessoa nem me posso obrigar a estar com alguém com a qual não me sinto eu.

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O Peso Bruto da Irritação

Se fôssemos contabilizar as paixões desta vida, os ódios e os amores, os grandes sobressaltos, as comoções, os transtornos, os arrebatamentos e os arroubos, os momentos de terror e de esperança, os ataques de ansiedade e de ternura, a violência dos desejos, os acessos de saudade e as elevações religiosas e se as somássemos todas numa só sensação, não seria nada comparada com o peso bruto da irritação. Passamos mais tempo e gastamos mais coração a sermos irritados do que em qualquer outro estado de espírito.
Apaixonamo-nos uma vez na vida, odiamos duas, sofremos três, mas somos irritados pelo menos vinte vezes por dia. Mais que o divórcio, mais que o despedimento, mais que ser traído por um amigo, a irritação é a principal causa de «stress» — e logo de mortalidade — da nossa existência.
É a torneira que pinga e o colega que funga, a criança que bate com o garfinho no rebordo do prato, a empregada que se esquece sempre de comprar maionnaise, a namorada que não enche o tabuleiro de gelo, o namorado que se esquece de tapar a pasta dentrífica, a nossa própria incompetência ao tentar programar o vídeo, o homem que mete um conto de gasolina e pede para verificar a pressão dos pneus,

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A Mulher Inteligente

Sou doente pela mulher inteligente.

Sou fanático pela mulher inteligente. Sou viciado na inteligência da mulher inteligente. Preciso dela, exijo-a a toda a hora, persigo-a como um cão com fome persegue o osso. Sou obcecado pela mulher inteligente. A mulher inteligente é a criação suprema de Deus. A mulher inteligente é o próprio Deus. A mulher inteligente, suspeito, deve ser mesmo uma forma superior do próprio Deus. Até Deus tem inveja da mulher inteligente. Meu Deus.

A mulher inteligente despreza o que a mulher não-inteligente ama.

A mulher inteligente não quer saber da conta bancária, não quer saber da marca do carro, da maquilhagem na cara. A mulher inteligente veste Prada a cada vez que fala, a cada vez que pensa. A mulher inteligente faz do que é um estilo, do que defende uma lei, do que parece uma moda. A mulher inteligente faz do tesão um estado de alma. A mulher inteligente dá-me tesão. Mmmm.

Partilhar a vida com uma mulher inteligente é a única forma de partilha possível.
Só com ela consigo partilhar, só a ela consigo dizer tudo o que sinto, tudo o que sou. Só ela saberá como eu sei – e depois de pensar um pouco saberá muito melhor do que eu sei – aquilo que eu quero dizer com aquilo que eu estou a dizer.

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Uma Grande parte da Arte é para Morrer

A pasmaceira dum domingo português, que até mesmo em Lisboa é de desiludir um pícnico (quanto mais um asténico!), levou-me ao abismo onde todo o provinciano que aqui chega tem de cair, se não quer esperar no café pelo comboio do regresso. Refiro-me, claro, à inevitável revista. E fez-me bem, porque assentei ideias sobre alguns problemas de literatura e arte.
Os risos desarticulados que pelo mundo a cabo desaguam nos muitos parques Meyer, o que são em verdade senão o prolongamento protoplásmico de certas farsas medievais? Revistas também daqueles atribulados tempos, as peças primitivas que até nós chegaram não têm outro mérito senão mostrar-nos que já então se dizia mal dos tiranos em trocadilhescas palavras e significativos gestos, ficando-nos ao cabo da sua penosa leitura a humana consolação de sabermos que o povo ria a bandeiras despregadas da própria miséria, e aliviava assim as suas penas.
Uma grande parte da arte é para morrer, e a pedra de toque da sua caducidade está em ela falar apaixonadamente de pessoas e acontecimentos inteiramente esquecidos da lembrança da História. Poder-se-á dizer que não se trata de beleza pura, a qual tem uma perenidade que transcende o circunstancial. Não é verdade.

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Luta de Classes

Não contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do seu preconceito.
A cultura é usada como símbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botão de punho. A raridade é condição indispensável desse exibicionismo. Só pertencendo a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa colecção de símbolos é descrita com pronúncia mais ou menos afectada e tem o objectivo de definir socialmente quem a enumera.
Para esses indivíduos raros, a cultura é caracterizada por aqueles que a consomem. Assim, convém não haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no início da madrugada, uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritórios for vista a ler um determinado livro nos transportes públicos, os snobs que assistam a essa imagem são capazes de enjeitá-lo na hora. Começarão a definir essa obra como “leitura de empregadas de limpeza” (com muita probabilidade utilizarão um sinónimo mais depreciativo para descrevê-las).
Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita gente: música, cinema, televisão, etc. Aquilo que mais surpreende é que estes “argumentos”, esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios supostamente culturais por indivíduos supostamente cultos,

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Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia

Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto não poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quão fiel te sou! Não apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui não há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», não era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.

Mas não posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu és a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E não hei-de desintegrar-me — não existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensível, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico à tua porta e espero por ti,

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As Saudades que Sinto de Ti

Meu Bebé, meu Bebezinho querido:

Sem saber quando te entregarei esta carta, estou escrevendo em casa, hoje, domingo, depois de acabar de arrumar as coisas para a mudança de amanhã de manhã. Estou outra vez mal da garganta; está um dia de chuva; estou longe de ti — e é isto tudo o que tenho para me entreter hoje, com a perspectiva da maçada da mudança amanhã, com chuva talvez e comigo doente, para uma casa onde não está absolutamente ninguém. Naturalmente (a não ser que esteja já inteiramente bom e arranje as coisas de qualquer modo, o que faço é ir pedir guarida cá na Baixa ao Marianno Sant’Anna, que, além de ma dar de bom grado, me trata da garganta com competência, como fez no dia 19 deste mês quando eu tive a outra angina.

Não imaginas as saudades de ti que sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza. O outro dia, quando falei contigo a propósito de eu estar doente, pareceu-me (e creio que com razão) que o assunto te aborrecia, que pouco te importavas com isso. Eu compreendo bem que, estando tu de saúde, pouco te rales com o que os outros sofrem,

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Ser Amigo

O coração de um amigo é uma coisa que sempre quer. Ser amigo é estar ao lado de quem não tem razão, contra qualquer inimigo que tenha, e apareça, dizendo com toda a justiça que o amigo não a tem. Não é suspender a razão – é usá-la friamente, aplicá-la, estar sempre consciente dela. E, contudo, não dizê-la, não mostrá-la, ficar sempre acima dela. Ser amigo é ter razão e não querer saber dela. Ser amigo é pensar duas vezes quando a última vez pertence ao que repensa o coração.

O amigo discordava dele. Dizia: Queres tu dizer que para se ser um bom amigo é preciso, às vezes, ser-se muito má pessoa? Sim, respondia ele, era isso que ele queria dizer. Porque ser amigo tem de ser uma coisa que custa. Às vezes é um trabalho, muitas horas, muitas dores; um trabalho que é o contrário do que seria natural, e do que apetece. Ser má pessoa para se ser um bom amigo (ou um bom português, ou um bom professor), é fazer fé que um outro fim faz valer o desconforto, faz valer o arrependimento, acaba por se abater sobre a vergonha. E sofrer bastante para que o outro nada sofra,

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Disputas Empobrecedoras

As disputas deviam ser regulamentadas e punidas como outros crimes verbais. Que defeitos não suscitam e acumulam em nós, reguladas e governadas como são pela cólera! Começamos por ser inimigos das razões e acabamos por o ser dos homens. Só aprendemos a discutir para contraditar, e, à força de se contraditar e ser-se contraditado, vem a acontecer que o fruto do discutir é perder e aniquilar-se a verdade. Assim, Platão, na República, proíbe o seu exercício aos espíritos ineptos e mal formados.
Porque nos havemos de pôr a caminho, para descobrir a verdade, com quem não tem passo nem andamento que sirvam? Não se prejudica o assunto quando o deixamos para procurar o meio de o tratarmos; não falo dos meios escolásticos e artificiais, falo dos meios naturais, dum entendimento são. Que sucederá por fim? Cada um puxa para o seu lado; perdem de vista o essencial, põem-no de parte na confusão do acessório.
No fim de uma hora de tormenta já não sabem o que procuram; um está em cima, outro em baixo, outro para o lado. Uns demoram-se com as palavras e com as comparações; outros não entendem o que se lhes objecta, tanto se entusiasmam: só pensam neles,

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As Pessoas Riam-se de Mim

A minha susceptibilidade a certo tipo de sustos (medo) era grande. Na rua, um homem caminhando na minha direcção, isto é, na direcção contrária, tirou da algibeira um lenço à minha frente; comecei de imediato a pensar, inconscientemente, acho, que estava a tirar uma arma ou um revólver.
A minha vista curta — nem sempre, mas excessivamente no que respeita aos traços das pessoas, aos gestos — afectava o meu cérebro desequilibrado. A minha imaginação interpretava mal o carácter dos seus olhares. Distorcia, não sabia explicar porquê, a intenção e o significado dos seus gestos. O meu próprio sentido de audição era débil; aplicava a mim próprio, retorcendo-as, as palavras que captava. Via em cada palavra um termo destinado a ofender-me, em cada frase, mal apanhada, a sombra e o vislumbre de um insulto.
As pessoas na rua riam-se: riam-se de mim. A minha vista débil não me deixava destruir esta ilusão. Não me atrevia a pôr os óculos que tinha no bolso, pois temia que as minhas desconfianças se revelassem fundadas.
Ansiava por ter uma grande auto-estima, para que a minha pessoa me fizesse esquecer de mim próprio. Desejava, oh, como desejava! — o impulso de me dedicar aos outros para que eles me fizessem esquecer de mim.

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Tremo por Ti que És o Meu Único Amigo

António,

Tenho imensas coisas que te dizer e não sei o que hei-de dizer, tão arreliada estou e tão sem cabeça para pensar a coisa mais insignificante deste mundo. Que linda noite, tu vais passar, Amigo querido! E eu? A pensar que a maldade e a estupidez desta vida que no nosso desgraçado país é um horror, me pode fazer o mal maior que a alguém se pode fazer. Tenho medo, tenho medo, meu amor. Este desassossego contínuo põe-me doente e faz-me doida.

Então eu hei-de passar a minha triste vida a tremer por ti? Eu tenho pouca sorte, e quando enfim encontro no meu caminho alguém que gosta de mim, por mim, como se deve gostar, que pensa na minha felicidade, no meu sossego, alguém que se digna ver que eu tenho alma a sentir, quando encontro enfim no mundo o que julgara não encontrar nunca, hei-de andar como o avarento a tremer pelo tesoiro que levou anos, uma vida inteira a conquistar e que lhe podem roubar num momento. Eu tenho pouca sorte! Que Deus tenha piedade de mim.

Quereria dizer-te muitas coisas mas nem sei o que; só tenho vontade de chorar e de gritar desesperadamente,

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Felicidade, Glória, Imaginação, Inteligência e Inspiração

Numa vida profundamente atormentada seria possível muitas vezes encontrar-se felicidade para várias outras existências. Da felicidade que um homem malbarata, sem lhe suspeitar o valor, outros homens tirariam alegria para toda a vida, assim como as sobras da mesa do rico dariam para sustento de mais de um pobre.

A glória é um processo de apuramento que nunca pára. À medida que a humanidade envelhece e que as suas recordações se vão amontoando, tornam-se necessárias novas selecções. Séculos inteiros são depurados nesses escrutínios, sem que sobreviva um nome sequer. Um dia os imortais irão unir-se aos anónimos no esquecimento final.

É a imaginação, tocha divina apensa ao espírito do homem, que lhe permite mover-se nas trevas da criação. Assim os peixes das profundezas oceânicas trazem um facho que os ilumina na noite eterna. Sem isto para que lhes serviriam os olhos? Sem imaginação, que utilidade teria para o homem a inteligência?

O homem de letras tem falhas pronunciadas de inteligência, a ponto de parecer estúpido ao homem de negócios. Não deixa porém por isso de se considerar, onde quer que se encontre, o mais inteligente da roda. Nada é mais absurdo do que essa superioridade,

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Amar e Ser Livre ao mesmo Tempo

Tudo o que posso dizer é que estou louco por ti. Tentei escrever uma carta e não consegui. Estou constantemente a escrever-te… Na minha cabeça, e os dias passam, e eu imagino o que pensarás. Espero impacientemente por te ver. Falta tanto para terça-feira! E não só terça-feira… Imagino quando poderás ficar uma noite… Quando te poderei ter durante mais tempo… Atormenta-me ver-te só por algumas horas e, depois, ter de abdicar de ti. Quando te vejo, tudo o que queria dizer desaparece… O tempo é tão precioso e as palavras supérfluas… Mas fazes-me tão feliz… porque eu consigo falar contigo. Adoro o teu brilhantismo, as tuas preparações para o voo, as tuas pernas como um torno, o calor no meio das tuas pernas. Sim, Anais, quero desmascarar-te. Sou demasiado galante contigo. Quero olhar para ti longa e ardentemente, pegar no teu vestido, acariciar-te, examinar-te. Sabes que tenho olhado escassamente para ti? Ainda há demasiado sagrado agarrado a ti.

A tua carta… Ah, estas moscas! Fazes-me sorrir. E fazes-me adorar-te também. É verdade, não te dou o devido valor. É verdade. Mas eu nunca disse que não me dás o devido valor. Acho que deve haver um erro no teu inglês.

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As Horas

Damos festas, abandonamos as nossas famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.

Abrir o Entendimento, Pela Amizade

O fruto da amizade é saudável e excelente para o entendimento, pois a amizade converte as tormentas e as tempestades dos sentimentos em dia límpido, e ilumina com luz solar as trevas e a confusão dos pensamentos. Não se deve entender com isso apenas os conselhos fiéis que se recebem de um amigo. Antes deles, é fora de dúvida que quem tenha a mente borbulhante de pensamentos logrará clarificar e ordenar o entendimento comunicando as suas ideias a outrem. Trará à tona mais facilmente os pensamentos; ordená-los-á de maneira mais eficaz; julgará como parecem quando convertidos em palavras; em suma, far-se-à mais sábio do que é, alcançando numa hora de palestra mais do que num dia inteiro de meditação.
Disse bem Temístocles ao Rei da Pérsia, que o falar é como pano de Arras, desenfardado e posto à venda: nele, as imagens são exibidas, enquanto que, no pensamento, permanecem enfardadas. Este fruto da amizade, o de abrir o entendimento, não se restringe apenas aos amigos capazes de nos dar conselho (estes são, na verdade, os melhores); mesmo sem isso, aprendemos acerca de nós mesmos, trazemos os nossos pensamentos à luz e afiamos a agudeza do nosso engenho como se contra uma pedra de amolar,

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A Duração da Vida em Perspectiva

A nossa religião não teve fundamento humano mais seguro do que o desprezo pela vida. Não somente o exercício da razão nos convida a isso, pois por que temeríamos perder uma coisa que perdida não pode ser lamentada; e, já que somos ameaçados por tantas formas de morte, não haverá maior mal em temê-las todas do que em suportar uma?
Que importa quando ela será, pois que é inevitável? A alguém que dizia a Sócrates: «Os trinta tiranos condenaram-te à morte», respondeu ele: «E a natureza a eles». Que tolice nos atormentarmos sobre o momento da passagem para a isenção de todo o tormento!
Assim como o nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim a nossa morte trará a morte de todas as coisas. Por isso, chorar porque daqui a cem anos não estaremos a viver é loucura igual a chorar porque há cem anos atrás não vivíamos. A morte é origem de uma outra vida. Assim choramos nós; assim nos custou entrar nesta aqui; assim nos despojamos do nosso antigo véu quando entramos naquela.
Não pode ser penoso algo que o é apenas uma vez. Será certo temer por tão longo tempo uma coisa de tão breve duração?

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A Vantagem dum Longo Treino

A vantagem de um longo treino e duma escrupulosa concentração no futuro: na hora das realizações estabelece-se um estado sonambúlico intermediário entre o fazer e o deixar fazer, entre o agir e o ser objecto de acção. Isso requer tanto menos atenção quanto é certo que, a maior parte das vezes, a realidade exige de nós muito menos do que imaginamos e, assim, encontramo-nos um pouco na situação do homem que, armado até aos dentes, ao travar uma luta, não tem necessidade, para vencer, senão de manejar ligeiramente uma única peça do seu arsenal. Com efeito, quem liga importância a si mesmo exercita-se no que é mais difícil para se tornar cada vez mais destro no que é fácil e poder ter a satisfação de triunfar, usando dos meios mais delicados e discretos. Ele repele, aliás, os expedientes grosseiros e selvagens, não se resolvendo a usá-los senão em casos de força maior.