Chopin
Não se acende hoje a luz…Todo o luar
Fique lá fora.Bem Aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco…um morcego a palpitar
Passa…torna a passar…torna a passar…
As coisas têm o ar de adormecidas…Mansinho…Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridão da sala…
Passagens de Florbela Espanca
441 resultadosExaltação
Viver!… Beber o vento e o sol!… Erguer
Ao Céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!…
Asas sempre perdidas a pairar,
Mais alto para as estrelas desprender!…
A glória!… A fama!… O orgulho de criar!…Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos extáticos, pagãos!…Trago na boca o coração dos cravos!
Boémios, vagabundos, e poetas:
– Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!…
Queria tanto saber porque sou Eu! Quem me enjeitou neste caminho escuro? Queria tanto saber porque seguro nas minhas mãos o bem que não é meu!
Trago no olhar visões extraordinárias, De coisas que abracei de olhos fechados…
Tenho que aprender o que ainda não sei: a ser humilde e modesta. Perdoe sempre o meu ridículo orgulho de pobre soberba; mas o orgulho tem sido a minha suprema defesa, tem sido o meu amparo e a minha força. Devo-lhe tantos e tão bons serviços!
Se alguém disser que pode amar uma pessoa a vida inteira, é porque mente!
Divino Instante
Ser uma pobre morta inerte e fria,
Hierática, deitada sob a terra,
Sem saber se no mundo há paz ou guerra,
Sem ver nascer, sem ver morrer o dia;Luz apagada ao alto e que alumia,
Boca fechada à fala que não erra,
Urna de bronze que a Verdade encerra,
Ah! ser Eu essa morta inerte e fria!Ah! fixar o efémero! Esse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro;Ah! fixar o momento em que, dolente,
Tuas pálpebras descem, lentamente,
Sobre a vertigem dos teus olhos de oiro!
Inconstância
Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!Passei a vida a amar e a esquecer…
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde ando…E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também… nem eu sei quando…
Amor, é comunhão de almas
No mesmo sagrado altar;
Contigo, amor da minha alma,
Quem me dera comungar!
Ama-se quem se ama e não quem se quer amar.
Há almas privilegiadas e únicas que nada têm a ver com a lógica absurda das leis humanas. As turbas inconscientes e boçais lançam, à face de certos entes, anátemas que o céu, se o há, não deve perdoar. À gargalhada insultante deste mundo responde a infinita serenidade do que fica para Além e que os olhos míopes não vêem.
Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros. Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isto que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive…
À Morte
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E, como uma raiz, sereno e forte.Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera…quebra-me o encanto!
Soror Saudade
A Américo Durão
Irmã, Soror Saudade, me chamaste…
E na minh’alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.Numa tarde de Outono o murmuraste;
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe;
Jamais me hão-de chamar outro mais doce;
Com ele bem mais triste me tornaste…E baixinho, na alma de minh’alma,
Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,Como se fossem pétalas caindo,
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: “Irmã, Soror Saudade”…
Está tudo quanto olho
Na escuridão mais intensa,
Faltou de teus olhos lindos
A luz profunda e imensa…
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…
À Janela De Garcia De Resende
Janela antiga sobre a rua plana…
Ilumina-a o luar com seu clarão…
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão…Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez…Quem sabe?…Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão…Mística dona, em outras Primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado…Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!…
Viver é não saber que se vive.
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente dirá, fechando o livro docemente: – Versos só nossos, só de nós os dois!…
Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!