Passagens de Pedro Homem de Melo

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Realidade

Fomos longe demais, para voltar
Aos antigos canteiros onde há rosas.
Em nós, o ouvido, quase e, quase, o olhar
Buscam nas cores vozes misteriosas…

Mas o mistério é flor da juventude.
Não rima com poemas desumanos.
A idade — a nossa idade! — nunca ilude.
Só uma vez é que se tem vinte anos.

Quebrámos todos, todos os espelhos
E o sol que, neles, está hoje posto
Já não reflecte os lábios tão vermelhos
Que nos iluminam, sempre, o rosto.

Realidade? Há uma: apenas esta!
— Somos espectros na cidade em festa.

Ironia

De tanto pensar na morte
Mais de cem vezes morri.
De tanto chamar a sorte
A sorte chamou-me a si.

Deu-me frutos duradoiros
A paz, a fortuna, o amor.
As musas vieram pôr
Na minha fronte os seus loiros…

Hoje o meu sonho procura
Com saudade a poesia
Dos tempos em que eu sofria…

— Que triste coisa a ventura!

Divórcio

Cidade muda, rente a meu lado,
Como um fantasma sob a neblina…
Há cem mil rostos. Tanto soldado
E tanto abraço desesperado
Nesta cidade tão masculina!

Cidade muda como um soldado.

Cidade cega. Todos os dias,
A nossa vida fica mais breve,
As nossas mãos ficam mais frias…
Todos os dias, todos os dias,
A morte paga, paga a quem deve.

Cidade cega todos os dias.

Cidade oblíqua. Sexo pesado.
Rio de cinza, lúgubre e lento…
Bandeira negra, barco parado,
Nunca o teu nome foi baptizado
Nem o teu beijo foi casamento!

Cidade minha, do meu pecado…

Cidade estranha, sabes que existo?
Os homens passam… Para onde vão?
Só tem amores quem não for visto.
Por isso canto, só porque insisto
Em dar combates à tentação.

Oh! a volúpia de não ser visto!

Fuga

O músico procura
Fixar em cada verso
O cântico disperso
Na luz, na água e no vento.

Porém, luz, vento e água
Variam riso e mágoa,
De momento a momento.

E em vão a área dos dedos
Se eleva! Não traduz
Os súbitos segredos
Escondidos no vento,
Nas águas e na luz…

Pátria

A Pátria não é apenas
Um corpo de bailador.
Não são duas mãos morenas
Nem mesmo um beijo de amor
Mais do que os livros que lemos,
Mais que os amigos que temos,
Mais até que a mocidade,
A Pátria, realidade,
Vive em nós, porque vivemos.

Inocência

De um lado, a veste; o corpo, do outro lado,
Límpido, nu, intacto, sem defesa…
Mitológico rosto debruçado
Na noite que, por ele, fica acesa!

Se traz os lábios húmidos e lassos
É que a paixão sem mácula ainda o cega
E tatuou na curva de alvos braços
As sete letras da palavra: entrega.

Acre perfume o dessa flor agreste.
Álcool azul o desse verde vinho.
De um lado o corpo; do outro lado, a veste
Como luar deitado no caminho…

Em frente há um pinheiro cismador.
O rio corre, vagaroso ao fundo.
Na estrada ninguém passa… Ai! tanto amor
Sem culpa!
Ai! dos Poetas deste mundo!

Dinheiro

Quem quiser ter filhos que doire primeiro
A jarra onde, inteira, caiba alguma flor!
Ai dos que têm filhos, mas não têm herdeiro!
— Dinheiro! Dinheiro!
Ó canção de Amor!

As noivas sorriem, talvez, aos vinte anos.
Os amantes sonham… Sonho passageiro!
Música de estrelas: Ética de enganos;
Ilusões, perdidas depois dos vinte anos..
E logo outras nascem: Dinheiro! Dinheiro!

Teus pais, teus irmãos e tua mulher
Cercarão teu leito de herói derradeiro
(Ai de quem, ouvindo-os, nada lhes trouxer!)
E hão-de ali pedir-te o que o mundo quer:
— Dinheiro! Dinheiro!

Deixa-lhes os versos que um dia fizeste,
Amarrado ao lodo, porém verdadeiro.
E eles te dirão: — Pássaro celeste,
Morreste? Morrendo, que bem que fizeste!

Ó canção de amor!
Dinheiro! Dinheiro!

Povo

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!

Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia…
Mas a tua vida, não!

Fui ter à mesa redonda,
Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão…
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!

Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços…
Mas a tua vida, não!

Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama…
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las…
Mas a tua vida, não!

Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.

Continue lendo…

Povo que lavas no rio

Povo que lavas no rio
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão
Há-de haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não

Fui ter à mesa redonda
Beber em malga que esconda
Um beijo de mão em mão
Era o vinho que me deste
Água pura em fruto agreste
Mas a tua vida não

Aromas de urze e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição
Povo, povo eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso
Mas a tua vida não

Os Amigos Infelizes

Andamos nus, apenas revestidos
Da música inocente dos sentidos.

Como nuvens ou pássaros passamos
Entre o arvoredo, sem tocar nos ramos.

No entanto, em nós, o canto é quase mudo.
Nada pedimos. Recusamos tudo.

Nunca para vingar as próprias dores
Tiramos sangue ao mundo ou vida às flores.

E a noite chega! Ao longe, morre o dia…
A Pátria é o Céu. E o Céu, a Poesia…

E há mãos que vêm poisar em nossos ombros
E somos o silêncio dos escombros.

Ó meus irmãos! em todos os países,
Rezai pelos amigos infelizes!

Aleluia

Era a mulher — a mulher nua e bela,
Sem a impostura inútil do vestido
Era a mulher, cantando ao meu ouvido,
Como se a luz se resumisse nela…
Mulher de seios duros e pequenos
Com uma flor a abrir em cada peito.
Era a mulher com bíblicos acenos
E cada qual para os meus dedos feito.
Era o seu corpo — a sua carne toda.
Era o seu porte, o seu olhar, seus braços:
Luar de noite e manancial de boda,
Boca vermelha de sorrisos lassos.
Era a mulher — a fonte permitida
Por Deus, pelos Poetas, pelo mundo…
Era a mulher e o seu amor fecundo
Dando a nós, homens, o direito à vida!

Canção à Ausente

Para te amar ensaiei os meus lábios…
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!

Para tocar-te ensaiei os meus dedos…
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio…
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!

E a vida foi passando, foi passando…
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.

A vida foi passando, foi passando…
E nunca mais vieste!