Adormecer
Vai vida na madrugada fria.
O teu amante fica,
na posse deste momento que foi teu,
amorfo e sem limites como um anjo;
a cabeça cheia de estrelas…
Fica abraçado a esta poeira que teu pé levantou.
Fica inĂştil e hirto como um deus,
desfalecendo na raiva de nĂŁo poder seguir-te!
Poemas Exclamativos de Manuel da Fonseca
9 resultadosAntes que Seja Tarde
Amigo,
tu que choras uma angĂşstia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse paĂs inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renĂşncia
Ă s coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
Romance do Terceiro-Oficial de Finanças
Ah! as coisas incrĂveis que eu te contava
assim misturadas com luas e estrelas
e a voz vagarosa como o andar da noite!As coisas incrĂveis que eu te contava
e me deixavam hirto de surpresa
na solidĂŁo da vila quieta!…
Que eu vinha alta noite
como quem vem de longe
e sabe o segredo dos grandes silĂŞncios
– os meus braços no jeito de pedir
e os meus olhos pedindo
o corpo que tu mal debruçavas da varanda!…(As coisas incrĂveis eu sĂł as contava
depois de as ouvir do teu corpo, da noite
e da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propĂłsito para enfeitar os teus cabelos
quando eu ia namorar-te…)Mas tudo isso, que era tudo para nĂłs,
nĂŁo era nada da vida!…
Da vida Ă© isto que a vida faz.
Ah! sim, isto que a vida faz!…
– isto de tu seres a esposa sĂ©ria e triste
de um terceiro-oficial de finanças da Câmara Municipal!…
Tragédia
Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pĂ´s a uso
aquilo que aprendeu
— vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor AntĂłnio
(tĂŁo novinho e já era «o Senhor AntĂłnio»!…)
ficou dono da loja e chefe da famĂlia…
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!…
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado…
— que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de VerĂŁo,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: — Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestĂŁo…
SolidĂŁo
Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos!Ă“ minha vontade, Ăł meu desejo
— os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!…(A luz do Sol beija e fecunda
mas os mĂsticos andaram pelos sĂ©culos
construindo noites
geladas solidões.)
Poemas da Infância
Segundo
Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, Ă tarde, brincar comigo?…
… Como nasci poeta
devia ter sido muito antes que as mĂŁes se apercebessem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, nĂŁo sei ao certo.Mas a histĂłria dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
TĂŁo grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossĂveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.E desafiava,
sem razĂŁo aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tĂŁo certeira
que levou o chapéu do Senhor Administrador!Em toda a vila
se falou logo num caso de polĂtica;
o Senhor Administrador
mandou vir da cidade uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o cĂ©u…Tal era o mistĂ©rio dos seios nascendo debaixo das blusas!
Vida
Vida:
sensualĂssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos sĂŁo horas
cadenciadas
rĂtmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplĂcio de Tântalo.
Envelheço…
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
Ă€ punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
OlĂmpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo…
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
NĂŁo avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vĂŞm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva,
Ansiedade
Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!
Noite de Sonhos Voada
Noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca armodaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tĂŁo dominado e tĂŁo solto
tĂŁo vencedor, tĂŁo vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angĂşstia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ă“ meu amor, já Ă© dia!…