Agora que Sinto Amor
Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
SĂŁo coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje Ă s vezes acordo e cheiro antes de ver.
Poemas sobre Cabeça de Alberto Caeiro
7 resultadosPoder Crer em Santa Bárbara
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme…
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caĂrem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos …Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguĂ©m…Ah! Ă© que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou…
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
TranqĂĽilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor…Sentia-me alguĂ©m que nossa acreditar em Santa
Bárbara…
Ah, poder crer em Santa Bárbara!(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela Ă© gente e visĂvel
Ou que julgará dela?)(Que artifĂcio!
Deste Modo ou daquele Modo
Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou nĂŁo calha.
Podendo Ă s vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever nĂŁo fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E nĂŁo precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento sĂł muito devagar atravessa o rio a
nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, nĂŁo Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer
como um homem,
Mas como quem sente a Natureza,
Uma Gargalhada de Raparigas
Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem nĂŁo vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: nĂŁo, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui,
E eu que sĂł oiço o ruĂdo calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça.
Talvez quem VĂŞ Bem nĂŁo Sirva para Sentir
Talvez quem vĂŞ bem nĂŁo sirva para sentir
E nĂŁo agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
NĂŁo deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e nĂŁo fui amado, o que sĂł vi no fim,
Porque nĂŁo se Ă© amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tĂŁo bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo Ă© vasto e o amor interior…!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.
A Noite É Muito Escura
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivĂduo que ali mora, e que nĂŁo sei quem Ă©,
Atrai-me sĂł por essa luz vista de longe.
Sem dĂşvida que a vida dele Ă© real e ele tem cara, gestos, famĂlia e profissĂŁo.Mas agora sĂł me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz Ă© a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, sĂł veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a famĂlia dele sĂŁo reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
Vi Jesus Cristo Descer Ă Terra
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer Ă terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda Ă roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mĂŁe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que nĂŁo era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estĂşpida,