Poemas sobre Fogo de Ana LuĂ­sa Amaral

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Poemas de fogo de Ana LuĂ­sa Amaral. Leia este e outros poemas de Ana LuĂ­sa Amaral em Poetris.

A Mais Perfeita Imagem

Se eu varresse todas as manhĂŁs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chĂŁo
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhĂŁs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparĂŞncia
que o nada representa, veria que o arbusto nĂŁo passa
de um inferno, ausente o decassĂ­labo da chama.
Se todas as manhĂŁs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusĂŁo, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosĂłdia incerta e
descontĂ­nua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosĂŁo. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, nĂŁo Ă© daqui, mas se emprestou
a um neurĂ´nio meu, unia memĂłria que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

Carta Ă  Minha Filha

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausĂŞncia
de razĂŁo nessa cadeia em sonho de novelo.

Hoje, nesta noite tĂŁo quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.

Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda Ă s vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas – Ă© sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontĂ­nua
de mentiras, em carinho de verso.

E o que queria dizer-te Ă© dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.

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