Dia de Descanso
Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da mediocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuárioE choro choro porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dadoPrecisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de serE choro de coragem isto é
as lágrimas hão-de cair sêcas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sozinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso isto é
o eco,
Poemas sobre Momentos
149 resultadosPassagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
Casa Abandonada
Minha saudade não larga
Certa casa abandonada.
E sinto, na boca, amarga,
Essa lágrima chorada
Quando a deixei…Caía, de leve, a tarde…
E, olhando para trás, vi
Aquela porta fechada.Nesse momento, senti
Pesar-me a fatalidade
De toda a Vida passada.Arde
Ainda, nos meus olhos,
A luz do sol que brilhava
Na janela.
Era uma luz amarela;
Uma luz de fim da tarde
Que ainda trago nos olhos…Ficava ali,
Por detrás da porta verde,
Tudo o que a vida nos perde,
Enquanto nos vai gastando…E triste e só me parti;
Quem sabe que outros Destinos,
Dolorosos ou divinos,
Procurando…
Cantiga do Rosto Branco
Rico era o rosto branco; armas trazia,
E o licor que devora e as finas telas;
Na gentil Tibeima os olhos pousa,
E amou a flor das belas.“Quero-te!” disse à cortesã da aldeia;
“Quando, junto de ti, teus olhos miro,
A vista se me turva, as forças perco,
E quase, e quase expiro.”E responde a morena requebrando
Um olhar doce, de cobiça cheio:
“Deixa em teus lábios imprimir meu nome;
Aperta-me em teu seio!”Uma cabana levantaram ambos,
O rosto branco e a amada flor das belas…
Mas as riquezas foram-se co’o tempo,
E as ilusões com elas.Quando ele empobreceu, a amada moça
Noutros lábios pousou seus lábios frios,
E foi ouvir de coração estranho
Alheios desvarios.Desta infidelidade o rosto branco
Triste nova colheu; mas ele amava,
Inda infiéis, aqueles lábios doces,
E tudo perdoava.Perdoava-lhe tudo, e inda corria
A mendigar o grão de porta em porta,
Com que a moça nutrisse, em cujo peito
Jazia a afeição morta.E para si,
A um Homem do Passado
Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sob pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?Desceste em andamento; afinal era
tudo tão inevitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vista os bons e os maus momentos.Tu ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.
Adeus Tranças Cor de Ouro
Adeus tranças cor de ouro,
Adeus peito cor de neve!
Adeus cofre onde estar deve
Escondido o meu tesouro!Adeus bonina, adeus lírio
Do meu exílio de abrolhos!
Adeus, ó luz dos meus olhos
E meu tão doce martírio!Adeus meu amor-perfeito,
Adeus tesouro escondido,
E de guardado, perdido
No mais íntimo do peito.Desfeito sonho dourado,
Nuvem desfeita de incenso
Em quem dormindo só penso,
Em quem só penso acordado!Visão, sim, mas visão linda,
Sonho meu desvanecido!
Meu paraíso perdido
Que de longe adoro ainda!Nuvem que ao sopro da aragem
Voou nas asas de prata,
Mas no lago que a retrata
Deixou esculpida a imagem!Rosa de amor desfolhada
Que n’alma deixou o aroma,
Como o deixa na redoma
Fina essência evaporada!Gota de orvalho que o vento
Levou do cálix das flores,
Curto abril dos meus amores,
Primavera de um momento!Adeus Sol, que me alumia
Pelas ondas do oceano
Desta vida, deste engano,
Na Casa Defronte
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.Nada! Não sei…
Um nada que dói…
Antes do Nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Fragmentos de uma Elegia
(6)
Sei que me ouves na tempestade
e nas gotas que ficam nas folhas,
a brilhar. Sei nas ondas ouvir
teus mergulhos de sereia
e nos gritos dos golfinhos
entender teus recados. Percebo
no trinar dos pássaros outro
som – a tua voz. Assim, quando
em tempo de solidão e desamor,
em momentos de vazio e medo
mergulho em trevas de terror,
quase me apetece desistir, como tu
desististe. Mas procuro-te na vida
e na vida luto contra a morte.