Poemas sobre Papéis de Álvaro de Campos

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Poemas de papéis de Álvaro de Campos. Leia este e outros poemas de Álvaro de Campos em Poetris.

HĂĄ Mais de Meia Hora

HĂĄ mais de meia hora
Que estou sentado Ă  secretĂĄria
Com o Ășnico intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estĂŁo fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande Ă  frente.
Canetas com aparos novos Ă  frente.
Mais para cĂĄ papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da “EnciclopĂ©dia BritĂąnica”.
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
NĂŁo tive paciĂȘncia para abrir completamente
O livro que me interessava e nĂŁo lerei.

Quem pudesse sintonizar tudo isto!

Tabacaria

NĂŁo sou nada.
Nunca serei nada.
NĂŁo posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhÔes do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem Ă©, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessĂ­vel a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pĂŽr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lĂșcido, como se estivesse para morrer,
E nĂŁo tivesse mais irmandade com as coisas
SenĂŁo uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

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ReticĂȘncias

Arrumar a vida, pÎr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propĂłsito claro, firme sĂł na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhĂŁ ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que Ă© sempre…
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre Ă© alguma coisa o sorrir…
Produtos romĂąnticos, nĂłs todos…
E se nĂŁo fĂŽssemos produtos romĂąnticos, se calhar nĂŁo serĂ­amos nada.
Assim se faz a literatura…
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são romùnticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregĂŁo como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia polĂ­tica,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,

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Na VĂ©spera de nĂŁo Partir Nunca

Na véspera de não partir nunca
Ao menos nĂŁo hĂĄ que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntĂĄrio de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
NĂŁo hĂĄ que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de jĂĄ nĂŁo haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqĂŒilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de nĂŁo ter precisĂŁo de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
HĂĄ quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego…
Grande tranqĂŒilidade…
Que repouso, depois de tantas viagens, fĂ­sicas e psĂ­quicas!
Que prazer olhar para as malas fĂ­tando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a vĂ©spera de nĂŁo partir nunca!

Existir Ă© Ser PossĂ­vel Haver Ser

Ah, perante esta Ășnica realidade, que Ă© o mistĂ©rio,
Perante esta Ășnica realidade terrĂ­vel — a de haver uma realidade,
Perante este horrĂ­vel ser que Ă© haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existĂȘncia de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
NĂŁo, nĂŁo se empequena… se transforma em outra coisa —
Numa sĂł coisa tremenda e negra e impossĂ­vel,
Urna coisa que estå para além dos deuses, de Deus, do Destino
—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo nĂŁo se abrangeu explicar por que Ă© um tudo,

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