Poemas de Rui Pires Cabral

4 resultados
Poemas de Rui Pires Cabral. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

Morangos

No começo do amor, quando as cidades
nos eram desconhecidas, de que nos serviria
a certeza da morte se podĂ­amos correr
de ponta a ponta a veia eléctrica da noite
e acabar na praia a comer morangos
ao amanhecer? Diziam-nos que tĂ­nhamos

a vida inteira pela frente. Mas, amigos,
como pudemos pensar que seria assim
para sempre? Ou que a mĂşsica e o desejo
nos conduziriam de estação em estação
até ao pleno futuro que julgávamos

merecer? Afinal, o futuro era isto.
Não estamos mais sábios, não temos
melhores razões. Na viagem necessária
para o escuro, o amor Ă© um passageiro
ocasional e difĂ­cil. E a partir de certa altura
todas as cidades se parecem.

A Nossa Vez

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciĂŞncia, coisas que andam
pela casa Ă  procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
SĂŁo os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. SĂŁo as ruas sossegadas
Ă  hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memĂłria: Ă© o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

I Was Made To Love Magic

A manhã com as suas proibições
na tua fala. A claridade estava a crescer
numa cama que já se tinha atravessado no escuro
como uma nave enfileirando para a guerra.

Eu nĂŁo tinha ficado para conhecer a vista
das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas
mas nĂŁo cheguei a levantar as persianas.
Talvez fosse um sĂ­tio ao qual nĂŁo se pudesse regressar
porque quando falávamos os nossos olhos
nĂŁo coincidiam com nenhuma palavra.

Teria gostado de te levar comigo outra vez
mas era difícil recuperar as razões
para o desejo. E no caso de nos ter acontecido
uma mudança, onde é que havíamos de procurar
os seus indĂ­cios? Estavas a dar de comer aos peixes
e eu sĂł falava em livros.

Espaços em Branco

Ao fim da noite, no frio do táxi, pousas
a cabeça no meu ombro – e assim entramos
duma vez e inteiramente na nossa vida.
Lá fora, pelo contrário, tudo perde realidade;

há em toda a parte um sossego abstracto,
as ruas parecem pintadas – betĂŁo entre
as árvores – numa tela baça. Vamos por lugares
que não reconheço, a minha geografia é vaga

e omissa como a dos velhos cartĂłgrafos
que desenhavam um mundo cheio de espaços
em branco. É onde estamos agora, num
intervalo do mapa rente Ă  primeira manhĂŁ –

que será a nossa e também a última.