Soneto XXXXV
Ecos de minhas glórias, que ficastes
Nos vales, onde foram sepultadas,
Pois morreram sem tempo malogradas,
Porque com elas não vos sepultastes?Se, como a brados de Leão, cuidastes
Que poderiam ser ressuscitadas,
São vozes essas no deserto dadas
Que a conjunção dos dias já passastes.E se ficastes para me ajudardes
A renovar meu sentimento esquivo,
Não desacrediteis minhas memórias,Que se c’os Ecos meus vos encontrardes,
Achareis, que servis mais para um vivo,
E que eles servem sós a mortas glórias.
Sonetos sobre Glória de Vasco Mouzinho de Quebedo
10 resultadosSoneto XIX
Qual mísera Calisto, quando atenta
Que abrindo o dia vão ao largo estanho
As mais estrelas a seu doce banho,
Só com seu Plaustro só ficar lamenta,Tal, quando me a memória representa
Banharem-se outros nesse mar estranho,
De graças mil gosando bem tamanho,
A falta dessa glória me atormenta.E como inda que irada Juno a tolha
Decer ao mar, não deixa em noite clara
Ferir nele seus raios do alto assento,Assi, por mais que a sorte em tudo avara
Para si deste corpo a parte escolha,
Livre, porém, me fica o pensamento.
Soneto XXXXVI
Tanto que sente enfraquecer o alento,
Quebrado o brio e já menos ligeira
Co’ a longa idade e vida derradeira,
[A] Águia a presa siguir cortar o vento.Levanta o mais que pode o vôo isento
E, firida do Sol desta maneira
Dá no mar, recobrando a força inteira
E, com novo vigor, novo ornamento.Quem não vê figurada a grande glória
De ua alma, cuja vida mal gastada
Com nova penitência se melhora.Ao alto se levanta co’a memória,
E no divino amor toda abrasada
Cai no mar das lágrimas que chora.
Soneto I
Ao Duque
A glória do edifício, o louvor alto
Do que a última mão lhe põe, se dobra
Em desgraça daquele, e mágoa da obra,
Que no melhor lhe foi escasso e falto.Este de letras, com que ao Céu me exalto
E que em mim vossa mão levanta e obra,
Se sua perfeição por vós não cobra,
A todos causa mágoa e sobressalto.Já que os andames da esperança minha
Não há quem desarmá-los hoje possa,
Fazei com que este meu trabalho monte.Vós sereis minha glória, eu glória vossa,
Ficando à vista as que eu já n’alma tinha,
Vossas armas reais em minha fronte.
Soneto VIII
Da virtude que move os Céus depende
Todo o bem, toda a glória e ser da terra,
E se u’hora faltasse, o vale, a serra,
A flor, o fruito, a fonte, o rio ofende.Esse braço que amor de longe estende
Para esta alma, meu ser e vida encerra,
E se algu’hora Amor dela o desterra,
Que glória mais que vida ou ser pretende.Mas nem há-de faltar essa virtude
Se não c’o mundo, nem faltar-me agora;
Vosso Amor até morte me assigura.Então para que nunca mais se mude,
Se mudará, e mudar-se Amor nessa hora,
Será para outro Amor que sempre dura.
Soneto XXXXVII
Como depois de tanta idade de ano
Agora o Céu vos dá, Jacinto, à terra?
Esta tardança algua culpa encerra
Ou mistério, que passa o ser humano.Foi descuido do Céu, ou foi engano
Da terra, que sem Céu mil vezes erra?
Ou pouco merecer, que este desterra
De tanta glória o prémio soberano?Nem foi erro da terra, nem foi vosso,
Nem do Céu foi, mas foi mistério seu
Que à Católica Igreja se aparelha.Filhos na mocidade o Céu lhe deu:
Guardou-vos, por vos dar filho mais moço
Para consolação desta Mãe velha.
Soneto XXXIX
Argos para outras cousas, Polifemo
Só para esta, despois que a noite abraça,
Que astuto caçador da surda caça,
Que sereia te pôs em tanto extremo?Torna mancebo em ti, que a vida temo
Te seja a sombra deste teixo escassa,
Ou qual figueira ao touro te desfaça
O lustre, o brio, o teu valor supremo.Deixa seco e sem glória o tronco verde
Com seus torcidos nós a branca hera,
Este de honra, ser, vida, te despoja.Porque despois não digas “quem soubera?”
O nome funeral de quem te perde,
Se ousa a língua dizê-lo, aqui se arroja.
Soneto XXXI
Fujo de mi, quando me não precato
Sem querer outra vez me acho comigo,
Tenho-me por suspeito e inimigo,
E comigo perpétua guerra trato.Entrando em mi destruo, prendo e mato,
Mas eu quando me vejo em tal pirigo
Contra mi me levanto e me persigo
A ferro e sangue, sem querer contrato.Por mi tenho os sentidos, que me acodem;
A razão co’a vontade e co’a memória
Sustentam contra mi outro partido.Ai civil guerra sem despojo e glória,
Onde os que podem mais contra si podem,
Onde o que é vencedor fica vencido.
Soneto XVII
A Pero de Maris sobre o seu livro
Sentindo-se de força e vigor falta,
Mal a que o tempo enfim todos condena,
Renovar-se outra vez a Águia ordena,
Abre as asas ao Sol, e as nuvens salta.Depois que lá se vê soberba e alta,
Lança-se ao mar com fúria não pequena,
E caindo-lhe a velha e antiga pena,
De nova glória se reveste e esmalta.Mar sois Maris, a língua lusitana
É esta Águia, que antiga se renova
E os ares sobre todas livre raia.Temo-lhe o caso de Ícaro de ufana;
Mas se do Sol queimada em mar o prova,
Será para que sempre nova saia.
Soneto XI
Lá nua estranha e solitária terra,
De gente e nação bárbara habitada,
O metal nobre não se estima em nada
Que embalde seu valor e preço encerra.Ouro, com que se arrea e move guerra
A corações, a Dama delicada,
Serve lá de grilhão, que em apertada
Corrente a malfeitores fecha e cerra.Nace esta confusão e diferença
Do muito que uns o seu valor alcançam,
E do pouco que de outros se conhece.Julguem do Sol, e sua glória imensa
Os olhos d’Águia, já que todos cansam,
Que só para tais olhos resplandece.