Soneto VII
No Rio Eufrate[s], ua erva, ou flor se cria
Que c’o Sol sobre as águas aparece,
E dentro se recolhe e se entristece
Quando no largo mar se esconde o dia.À vista de meu Sol ledo me via
Fora do rio, que dos olhos crece;
Agora que meu Sol não me amanhece,
Entre lágrimas vivo em noite fria.Mas desta flor o triste estado é breve,
Trás noite manhã tem; ai de quem chora
Contando noites, sem que um dia conte.O Sol já por milagre quedo esteve:
Também parou meu Sol, mas parou fora,
Para noite sem fim de meu Horizonte.
Passagens de Vasco Mouzinho de Quebedo
44 resultadosSoneto XXI
As Relíquias de S. Cruz de Coimbra
Aquela Águia gentil de vista estranha
A Cristo viu, co’ a mão de estrelas chea,
Solícito, qual anda o que semea
C’os olhos longos no que ao longe apanha.Lavrador foi no mundo, e com tamanha
Sede que inda de lá fruito granjea.
Mas ai Senhor, em terra e triste area,
Mal estrelas se dão, pouco se ganha.Bem sabe Cristo o que semea, e onde:
As vivas mortes são de mortas vidas
(Que hoje neste sagrado templo esconde)Estrelas, que de carne estão vistidas.
A quem semea seu valor responde,
E bem, donde as semea merecidas.
Soneto XXXXVI
Tanto que sente enfraquecer o alento,
Quebrado o brio e já menos ligeira
Co’ a longa idade e vida derradeira,
[A] Águia a presa siguir cortar o vento.Levanta o mais que pode o vôo isento
E, firida do Sol desta maneira
Dá no mar, recobrando a força inteira
E, com novo vigor, novo ornamento.Quem não vê figurada a grande glória
De ua alma, cuja vida mal gastada
Com nova penitência se melhora.Ao alto se levanta co’a memória,
E no divino amor toda abrasada
Cai no mar das lágrimas que chora.
Soneto II
A D. Manuel de Lencastre.
Na tenebrosa noite o caminhante,
Quando o ar se engrossa e o mundo todo atroa,
O tronco busca donde se coroa
Da fugitiva Dafne o brando amante.Ali não teme o raio fulminante,
Por mais que na vizinha árvore soa,
E seu louvor por onde vai pregoa
Tanto que a cerração c’o sol levante.Trabalha o Céu em minha fim, trabalha
A terra em minha fim, com fúria imensa
Cada hora espero pela derradeira.Onde me acolherei que alguém me valha?
A vós, a quem não quer fazer ofensa
O Céu, nem pode a terra, inda que queira.
Soneto III
A D. Fernão Martins Mascarenhas quando o fizeram Bispo.
Espanta crecer tanto o Crocodilo
Só por seu acanhado nascimento,
Que se maior nascera, mais isento
Estivera d’espanto o pátrio Nilo.Em vão levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical novo ornamento,
Pois no ventre o imortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois visti-lo.Tardou, mas veio, que a quem mais merece
Muito mais tarde vir o prémio é certo,
E sempre tarda, inda que venha cedo.Os Céus, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem; quem soubesse
Trás d’aquele segredo, este segredo?
Soneto XXII
Ao mesmo
Rico Almazém, que Deus estima e preza,
Mais forte que o poder do inferno forte,
Bem te armas de ua morte e de outra morte,
Para qualquer encontro e brava empresa.Arma-se o fraco cá de fortaleza
Para que assi resista ao duro corte;
Mas Deus sempre peleja d’outra sorte,
Cobrindo o forte de mortal fraqueza.Usou c’o inferno deste próprio modo,
Iscando o anzol da natureza sua
Co’ a nossa; e foi-se o pece trás o engano.E co’ as armas da carne rota e nua
Dos Mártires venceu o mundo todo,
Hoje em ti as põem para socorro humano.
Soneto XXXXIIII
Do fundo sobe do mar Indo acima
A recolher o orvalho a concha, e nela,
Despois que pouco a pouco se congela,
A pérola nos dá de tanta estima.Hoje, despois que o Céu choveu de cima
O rico orvalho, aquela concha, aquela
Divina humana, mais que todas bela,
O mundo pobre com seu parto anima.Mas ai que a concha aberta o orvalho fino
Recebe, e em pedra dá; porém, Maria,
De outra invenção e modo extraordinário.E como vem tão pobre este minino?
Vem tosca pedra, e seu preço e valia
Só conhece o discreto lapidário.
Soneto XXXIIII
Buscando ando ventura e não dou nela,
A tudo só por ela me aventuro,
Mas por mais que acho tudo, em vão procuro
Que só de tudo, em tudo me falta ela.Se para vê-la velo, também vela
E vai de mim fugindo pelo escuro,
Eu pelo escuro a sigo assaz seguro
Como quem a não tem para perdê-la.Mas ai, que digo, como não conheço
A ventura que sem ventura alcanço,
Que mor ventura que não ter ventura.Fora ventura então de pouco preço
E tempo, mas faltando a meu descanso,
Achei ventura em vós, que sempre dura.
Soneto I
Ao Duque
A glória do edifício, o louvor alto
Do que a última mão lhe põe, se dobra
Em desgraça daquele, e mágoa da obra,
Que no melhor lhe foi escasso e falto.Este de letras, com que ao Céu me exalto
E que em mim vossa mão levanta e obra,
Se sua perfeição por vós não cobra,
A todos causa mágoa e sobressalto.Já que os andames da esperança minha
Não há quem desarmá-los hoje possa,
Fazei com que este meu trabalho monte.Vós sereis minha glória, eu glória vossa,
Ficando à vista as que eu já n’alma tinha,
Vossas armas reais em minha fronte.
Soneto XXXV
Eclipsou-se teu Sol quando nascia,
Em flor cortada foi tua doce vida,
Antes de ser ganhada, foi perdida,
Deixou seus dias antes de seu dia.Aparecer então nos parecia
Quando a já vimos desaparecida,
Enfim, moça fermosa, estás rendida
À lei humana envolta em terra fria.Ai Amor, quantas vezes te condenas!
Criaste-me nesta alma ua esperança,
Deixas roubar-ma a morte sem valer-me.Mas bem entendo, Amor, que isto me ordenas
Para vir a saber a quanto alcança,
Perdê-la, sem perder-te, com perder-me.
Soneto VIII
Da virtude que move os Céus depende
Todo o bem, toda a glória e ser da terra,
E se u’hora faltasse, o vale, a serra,
A flor, o fruito, a fonte, o rio ofende.Esse braço que amor de longe estende
Para esta alma, meu ser e vida encerra,
E se algu’hora Amor dela o desterra,
Que glória mais que vida ou ser pretende.Mas nem há-de faltar essa virtude
Se não c’o mundo, nem faltar-me agora;
Vosso Amor até morte me assigura.Então para que nunca mais se mude,
Se mudará, e mudar-se Amor nessa hora,
Será para outro Amor que sempre dura.
Soneto XXVI
Fortuna ingrata, porque me persegues?
Apareces-me branda e logo foges,
Dás-me um bem, porque dele me despojes,
Mostras-te liberal, só porque negues.Para que só me deixes, só me segues,
Fazes-me mimos, só porque me enojes,
Se me levantas, é porque me arrojes,
Se me asseguras, é porque me entregues.Vinga-te bem, Fortuna, que vingado
Estou assaz de ti, com te vingares,
Que todos dizem ser mal empregado.Um bem me fazes sem o imaginares:
C’o Mundo, eu contra mim tenho apostado,
E assim ganho sempre c’os azares.
Soneto XXXXVII
Como depois de tanta idade de ano
Agora o Céu vos dá, Jacinto, à terra?
Esta tardança algua culpa encerra
Ou mistério, que passa o ser humano.Foi descuido do Céu, ou foi engano
Da terra, que sem Céu mil vezes erra?
Ou pouco merecer, que este desterra
De tanta glória o prémio soberano?Nem foi erro da terra, nem foi vosso,
Nem do Céu foi, mas foi mistério seu
Que à Católica Igreja se aparelha.Filhos na mocidade o Céu lhe deu:
Guardou-vos, por vos dar filho mais moço
Para consolação desta Mãe velha.
Soneto XXXIX
Argos para outras cousas, Polifemo
Só para esta, despois que a noite abraça,
Que astuto caçador da surda caça,
Que sereia te pôs em tanto extremo?Torna mancebo em ti, que a vida temo
Te seja a sombra deste teixo escassa,
Ou qual figueira ao touro te desfaça
O lustre, o brio, o teu valor supremo.Deixa seco e sem glória o tronco verde
Com seus torcidos nós a branca hera,
Este de honra, ser, vida, te despoja.Porque despois não digas “quem soubera?”
O nome funeral de quem te perde,
Se ousa a língua dizê-lo, aqui se arroja.
Soneto XXXI
Fujo de mi, quando me não precato
Sem querer outra vez me acho comigo,
Tenho-me por suspeito e inimigo,
E comigo perpétua guerra trato.Entrando em mi destruo, prendo e mato,
Mas eu quando me vejo em tal pirigo
Contra mi me levanto e me persigo
A ferro e sangue, sem querer contrato.Por mi tenho os sentidos, que me acodem;
A razão co’a vontade e co’a memória
Sustentam contra mi outro partido.Ai civil guerra sem despojo e glória,
Onde os que podem mais contra si podem,
Onde o que é vencedor fica vencido.
Soneto XXIIII
De ua esperança vã suspenso mouro,
Mas quando a fortes cabos mais me amarro,
Então vou através, então desgarro,
Como barca no Tejo, ou rio Douro.Ah’ quem fora um pastor que seu tesouro
Tem no leve cortiço e tosco tarro,
E de ledo e contente os pés de barro
Julga consigo por cabeça de ouro.Mas aquele que tem de ouro a cabeça
E pés que são de barro em cima sente,
Como não sintirá tanta desgraça.Viva ufano, porém viva contente:
Quebra o barro, por mais que se endureça,
O imortal ouro mil idades passa.
Soneto XXXX
Num seco ramo, nú de fruto e folha,
Ua queixosa rola geme e sente
Do casto ninho seu parceiro ausente,
E vê-lo a cada sombra se lhe antolha.Dali dece a ua fonte onde recolha
Algum alento, e porque não consente
A dor ver água clara, juntamente
A envolve c’os pés e o bico molha.Se ausência e amor sentida a rola tem,
Que nem de ausência, nem de amor conhece,
Em quem pesar nem sentimento cabe,Que farão em quem sente o que padece
Quem de seu mal conhece, e de seu bem
Temo que venha a não sentir, e acabe.
Soneto X
Quais no soberbo mar à nao, que cansa
Lidando c’os assaltos da onda e vento,
Os Ebálios irmãos do Etéreo assento
Lhe confirmam do porto a esperança,Tal vossa vista ao tempo, que se alcança
Desta, que não tem mor contentamento,
No mar de meu cuidado e meu tormento
Mil esperanças cria de bonança.Comparação, conforme a causa, ufana,
Pois quando um me aparece, outro se esconde,
Como no Céu faz ua, e outra estrela.Iguais também no Amor, que em vós responde
Também no desamor da Irmã Troiana,
Que ambos vos conjurais em ódio dela.
Soneto XXXVII
Menos sente o não ver quem cego nasce
Que aquele, que depois de ter gozado
A frescura do rio, fonte e prado,
Nesta beleza os olhos já não pasce.Menos, o que não viu a bela face
Da fortuna, que quem alevantado
No mais alto, caiu daquele estado,
Não temendo que esquiva se mostrasse.Mas contudo não sente tanto o cego
Que já viu, o não ver, nem sente assi
O que já rico foi, ver-se em pobreza.Como eu, e tanto mais nisto me emprego,
Quanto mor é o bem em que me vi
Que a vista de seus olhos e a riqueza.
Soneto XXXXII
Dai-me razão, Baptista, que conclua
Porque sois voz que no deserto brada,
Se Deus tem já sua palavra dada
De a seu filho chamar palavra sua.E não é bem que se vos atribua
Nome que a Deus para seu filho agrada.
Quanto ua confissão desenganada
Obrou, temo esta voz tanto destrua.Ah! quanto é seu ofício à voz conforme,
Desperta a voz, mas a palavra fala,
Mil vezes com quem dorme usamos isto.Vem Deus falar c’o Mundo, e porque dorme
Primeiro a voz lhe manda que o abala,
O Baptista desperta, e fala Cristo.