Textos de Franz Kafka

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Textos de Franz Kafka. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

O Livre Arbítrio

Um homem é dotado de livre arbítrio e de três maneiras: em primeiro lugar, era livre quando quis esta vida; agora não pode evidentemente rescindi-la, pois ele não é o que a queria outrora, excepto na medida em que completa a sua vontade de outrora, vivendo.
Em segundo lugar, é livre pelo facto de poder escolher o caminho desta vida e a maneira de o percorrer.
Em terceiro lugar, é livre pelo facto de na qualidade daquele que vier a ser de novo um dia, ter a vontade de se deixar ir custe o que custar através da vida e de chegar assim a ele próprio e isso por um caminho que pode sem dúvida escolher, mas que, em todo o caso, forma um labirinto tão complicado que toca nos menores recantos desta vida.
São esses os tês aspectos do livre arbítrio que, por se oferecerem todos ao mesmo tempo formam apenas um e de tal modo que não há lugar para um arbítrio, quer seja livre ou servo.

O Começo de Todas as Histórias

O começo de todas as histórias é, no princípio, ridículo. Parece não haver esperança de que esta coisa acabada de nascer, ainda incompleta e tenra em todas as suas articulações, seja capaz de se manter viva na organização completa do mundo, que, como todas as organizações completas, luta por se fechar. Contudo, não podemos esquecer que a história, se tiver uma justificação para existir, tem dentro de si a sua própria organização completa até antes de estar completamente formada; por esta razão não há motivo para desesperar com o princípio de uma história; num caso semelhante, os pais teriam de desesperar com o bebé porque não tinham nenhuma intenção de trazer para o mundo este ser ridículo e patético.
É claro que nunca sabemos se há razão ou não para o desespero que sentimos. Mas reflectindo sobre isso podemos obter um certo apoio; sofri anteriormente da falta deste conhecimento.

Escrever com Integridade

Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tanto e tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia permitir fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer — e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer — o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que foi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais.

A Pessoa de quem se Anda à Procura

Normalmente a pessoa de quem se anda à procura vive mesmo ao lado. Isto não é fácil de explicar, temos de simplesmente aceitá-lo como um facto. Tem raízes tão profundas que não se pode fazer nada, mesmo com esforço. A razão é que nós não sabemos nada deste vizinho de quem andamos à procura. Ou seja, não sabemos que andamos à procura dele nem que ele vive na casa ao lado, mas então ele vive mesmo na casa ao lado. É claro que podemos saber isto como um facto geral na nossa experiência; só que sabê-lo não tem qualquer importância, mesmo que guardemos isso em mente.

Vida de Escritor

É fácil reconhecer em mim a concentração de todas as minhas forças sobre a escrita. Quando se tornou claro no meu organismo que escrever era a direcção mais produtiva que podia tomar o meu ser, tudo correu para esse lado e deixou-me vazio de todas as capacidades que se dirigiam para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e, acima de tudo, da música. Eu atrofiava em todas estas direcções. Isto era necessário porque a totalidade das minhas forças é tão leve que só colectivamente é que elas podiam semi-servir a finalidade da minha escrita. É claro que não encontrei esta finalidade independentemente ou conscientemente, ela encontrou-se a si própria e só o escritório interfere com ela, e interfere completamente. De qualquer modo, eu não me devia queixar pelo facto de não conseguir ter uma namorada, de perceber exactamente tanto de amor como de música e de ter de me resignar nos esforços mais superficiais de que posso lançar mão, de na noite de fim de ano ter jantado escorcioneira e espinafres com um quarto de Ceres e de no domingo não ter podido participar na leitura que Max fez dos seus trabalhos filosóficos; a compensação de tudo isto é clara como o dia.

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Vivemos Presos ao Nosso Passado e ao Nosso Futuro

A nós ligam-nos o nosso passado e o nosso futuro. Passamos quase todo o nosso tempo livre e também quanto do nosso tempo de trabalho a deixá-los subir e descer na balança. O que o futuro excede em dimensão, substitui o passado em peso, e no fim não se distinguem os dois, a meninice torna-se clara mais tarde, tal como é o futuro, e o fim do futuro já é de facto vivido em todos os nossos suspiros e assim se torna passado. Assim quase se fecha este círculo em cujo rebordo andamos. Bem, este círculo pertence-nos de facto, mas só nos pertence enquanto nos mantivermos nele; se nos afastarmos para o lado uma vez que seja, por distracção, por esquecimento, por susto, por espanto, por cansaço, eis que já o perdemos no espaço; até agora tínhamos tido o nariz metido na corrente do tempo, agora retrocedemos, ex-nadadores, caminhantes actuais, e estamos perdidos. Estamos do lado de fora da lei, ninguém sabe disso, mas todos nos tratam de acordo com isso.

Enfrentar-se a Si Próprio

Ódio da introspecção activa. Explicações da nossa alma, tais como: ontem eu estava assim e assado, por esta ou por aquela razão; hoje estou assim e assado, por qualquer outra razão. Não é verdade, nem por esta razão nem por aquela razão, e por isso também nem assim nem assado.
Enfrentar-se a si próprio calmamente, sem precipitações, viver como se tem de viver, não andar à caça do próprio rabo como o cão.
Adormeci nos arbustos. Um barulho acordou-me. Encontrei um livro nas minhas mãos, que tinha estado a ler. Deitei-o fora e levantei-me de um salto. Passava pouco do meio-dia; em frente da colina em que eu estava estendia-se uma grande planura com aldeias e lagos e sebes todas iguais, altas, que pareciam feitas de junco. Pus as mãos nas ancas, examinei tudo com o olhar, e ao mesmo tempo escutei o barulho.

A Necessidade de Conversar

Nos jornais, em conversas, no escritório, a impetuosidade da linguagem leva por vezes uma pessoa a perder-se, daí a esperança, que salta da fraqueza temporária, de uma repentina e mais forte iluminação mesmo no momento seguinte, ou de uma forte confiança em si próprio, ou mero desleixo, ou uma impressão forte e actual de que uma pessoa quer a todo o custo descarregar no futuro, portanto a opinião de que o verdadeiro entusiasmo no presente justifica toda e qualquer confusão futura, ou o deleite nas frases que se elevam no meio com um ou dois empurrões e que a pouco e pouco abrem completamente a boca mesmo que depois a deixem fechar com demasiada rapidez e tortuosidade, ou a leve possibilidade de um juízo claro e decisivo, ou o esforço para dar mais fluência ao discurso que realmente já acabou, ou o desejo de abandonar à pressa o tema se assim tiver de ser, de rastos, ou o desespero que tenta encontrar uma saída para a sua pesada respiração, ou o anseio por uma luz sem sombra — tudo isto pode levar uma pessoa a perder-se em frases como: «O livro que acabei agora mesmo é o mais belo que jamais li» ou «é tão belo,

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O Individuo Indestrutivel

Teoricamente, só há uma possibilidade perfeita de felicidade: acreditar no indestrutível em si sem a ele aspirar.
O indestrutível é um; cada indivíduo o é ao mesmo tempo que é comum a todos, daí esse laço indissolúvel entre os homens, que é sem exemplo.

Desabafar o Sofrimento

Nunca compreendi como é possível que alguém que escreva consiga objectivar os seus sofrimentos enquanto vive sob o seu peso; assim eu, por exemplo, no meio da minha infelicidade, provavelmente ainda com a minha cabeça a queimar de infelicidade, sento-me e escrevo a alguém: sou infeliz. Sim, eu até posso ir além disto e com todos os floreados que o meu talento possa inventar, que não parecem ter nada a ver com a minha infelicidade, toco uma orquestração simples, ou em contraponto, ou uma orquestração completa de variações sobre o meu tema. E não é uma mentira, e não mitiga a minha dor: é simplesmente um extra misericordioso de força num momento em que o sofrimento me consumiu até ao fundo do meu ser e gastou completamente todas as minhas forças.

Um Cidadão Livre

Ele é um cidadão livre e seguro da Terra, pois está atado a uma corrente suficientemente longa para lhe dar livre acesso a todos os espaços terrenos e, no entanto, longa apenas para que nada seja capaz de arrancá-lo dos limites da Terra. Mas é, ao mesmo tempo, um cidadão livre e seguro do céu, uma vez que está igualmente atado a uma corrente celeste calculada de maneira semelhante. Assim, se quer descer à Terra, a coleira do céu enforca-o; se quer subir ao céu, enforca-o a coleira da Terra. A despeito de tudo, tem todas as possibilidades e sente-as, recusando-se mesmo a atribuir o que acontece a um erro cometido no primeiro acto de acorrentar.

A Fraqueza Fundamental do Homem

A fraqueza fundamental do homem não é nada que ele não possa vencer, desde que não possa aproveitar com a vitória. A juventude vence tudo, a impostura, a astúcia mais dissimulada, mas não há ninguém que possa deter no voo a vitória, torná-la viva, porque então a juventude deixou de existir. A velhice não ousa tocar na vitória e a nova juventude atormentada pelo novo ataque que se desencadeia imediatamente, deseja a sua própria vitória. É assim que o Diabo sem cessar vencido, nunca é aniquilado.

A Existência Baseada Em Justificações

Ninguém aqui gera mais do que a sua possibilidade espiritual de viver; pouco importa que dê a aparência de trabalhar para se alimentar, para se vestir, etc.; com cada bocada visível uma invisível lhe é estendida, com cada vestimenta visível uma invisível vestimenta. Está nisso a justificação de cada homem. Parece fundamentar a sua existência com justificações ulteriores, mas essa é apenas a imagem invertida que oferece o espelho da psicologia, de facto erege a sua vida sobre as suas justificações. É verdade que cada homem deve poder justificar a sua vida (ou a sua morte, o que vem dar no mesmo), não pode furtar-se a essa tarefa.

A Nossa Verdade

A verdade é aquilo que todo o homem precisa para viver e que ele não pode obter nem adquirir de ninguém. Todo o homem deve extraí-la sempre nova do seu próprio íntimo, caso contrário ele arruina-se. Viver sem verdade é impossível. A verdade é talvez a própria vida.

Cessa de Correr !

Se não cessas de correr, marulhando no ar tépido com as tuas mãos como natatórios, olhando furtivamente tudo diante de que passas no meio-sono apressado, acontecer-te-á também um dia deixar passar diante de ti o carro. Se te mantiveres firme, pelo contrário, com o poder do teu olhar fazendo crescer as raízes em profundidade e em comprimento – nada então te poderá eliminar – em virtude não das raízes mas da força do teu olhar que escruta – será então que verás o longínquo imutavelmente obscuro de onde nada pode surgir a não ser precisamente uma vez este carro que rola para ti, que se aproxima, cada vez maior e que, no próprio instante em que entras em tua casa, enche o mundo enquanto mergulhas nele como uma criança no banco acolchoado de uma diligência que corre através da tempestade e da noite.

A Humildade é a Base da Sociedade

A humildade oferece a todos, mesmo ao que se desespera na solidão, a relação mais forte com o semelhante, e, na realidade, imediatamente, mas, com certeza, só no caso da humildade completa e duradoura. Ela é capaz disso por ser ao mesmo tempo a verdadeira linguagem da oração e a mais sólida das ligações. A relação com o semelhante é a relação da prece; a relação consigo mesmo, a relação do esforço para alcançar algo; a energia para esse esforço é extraída da oração.

Podes conhecer outra coisa que não seja a fraude? Fosse ela um dia obstruída, tu de modo nenhum poderias olhar para lá a não ser que quisesses tranformar-te numa estátua de sal.

O Instante Decisivo da Evolução Humana

O instante decisivo da evolução humana dura sempre. Eis porque os movimentos espirituais e revolucionários declaram nulo tudo o que os precede produzido outrora, fazem-no com razão porque ainda nada foi.

A Consolação no Trabalho Literário

A consolação estranha, misteriosa, talvez perigosa, talvez salvadora, que há no trabalho literário: é um salto para fora da fila dos assassinos, é um ver o que realmente se está a passar. Isto acontece através de um género mais elevado de observação, um género mais elevado, não mais penetrante, e quanto mais alto menos ao alcance da «fila», quanto mais independente se torna, tanto mais obediente às suas próprias leis de movimento, tanto mais incalculável, mais alegre, mais ascendente é o seu curso.

Influenciar o Estado de Espírito

Nunca é possível anotar e avaliar todas as circunstâncias que influenciam o estado de espírito do momento, que até estão activas dentro dele, e que finalmente estão activas na própria avaliação, por isso é falso dizer que ontem me senti decidido, que hoje estou desesperado. Estas diferenças apenas provam que a pessoa deseja influenciar-se a si própria, e tão longe de si própria quanto possível, escondida por detrás de preconceitos e fantasias, criar temporariamente uma vida artificial, tal como alguém, por vezes, a um canto da taberna, suficientemente escondido por detrás de um pequeno copo de uísque, inteiramente só consigo próprio, se entretém com imaginações e sonhos improváveis e falsos.

Um Amigo é uma Pessoa Inútil

Uma pessoa inútil. Um amigo? Se tento recordar-me dos atributos que ele possui, o que resta, mesmo depois do veredicto mais favorável, é apenas a sua voz, um pouco mais profunda do que a minha. Se eu exclamar «salvo», era como se eu fosse Robinson Crusoé e exclamasse «salvo!», ele fazia eco com a sua voz mais profunda. Se eu fosse Korah e exclamasse «perdido!», ele estaria ali prontamente para com a sua voz mais profunda repetir em eco. Eventualmente acabamos por nos cansar de levar para todo o lado um violão. Ele próprio não faz isto alegremente, sorve do meu eco só porque não pode fazer outra coisa. Ocasionalmente, durante as férias, quando acabo por ter tempo para prestar atenção a isto, eu discuto com ele, talvez no jardim, para saber como me posso libertar dele.