Textos sobre Homens de Agustina Bessa-Luís

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Textos de homens de Agustina Bessa-Luís. Leia este e outros textos de Agustina Bessa-Luís em Poetris.

A Saturação da Servidão

Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (…) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor.
Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma.

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A Importância da Arte

A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.

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A Cultura não se Enquadra na Totalidade Política

A cultura nunca poderá ser um factor estratégico de mudança. Se é estratégia, não é cultura. Faz-se apelo à cultura como estratégia de mudança, tentando resolver a condição perturbadora do homem culto, munido de culpabilidade inconsciente, ou simplesmente isento da culpabilidade pelo sofrimento. Isso não é possível. A cultura não se enquadra na totalidade política. Há um grave mal-entendido quanto a isso. A cultura não significa o conforto da neutralidade, a irónica graduação da expectativa, a ginástica do não-compomisso. Significa um enraizamento em si mesmo, que conserva no homem a faculdade de julgar. Não é contrária à acção, mas é condição necessária para que a acção seja serena e útil, e não impaciente e desordenada. Não se trata de racismo espiritual; não se trata da pretensão de existir à parte da história política do mundo. É a intenção absolutamente necessária de ser livre, face aos acontecimentos, qualquer que seja a lógica que os liga. A cultura é o que identifica um povo com a sua finalidade.

O Desejo do Homem é Contrário à Sua Unidade

Houve tempo em que o homem inventou o amor cortês para não perder a intimidade das mulheres. Elas estavam a ser atraídas pela formidável influência da Igreja que as recebia permitindo-lhes uma personalidade estável. As mulheres amam essa personalidade estável que Freud soube preservar nas suas relações com Marta, a mulher de toda a sua vida. Ler a correspondência de Freud com Marta é muito salutar neste mundo a abarrotar de esgotamentos nervosos e falsas ou reais confidências. Um dos seus clientes (Schonberg) causava-lhe grande preocupação. Um dia, a cunhada, vendo o doente cumprimentar uma senhora, disse: «O facto de ele ser outra vez bem educado com as mulheres é também um índice de melhoria». Freud não deixa de referir isto, que corresponde a uma personalidade venerável. As mulheres acham que é sinal de normalidade serem tratadas com cortesia. O desejo não lhes diz nada, comparado com uma palavra doce e conveniente. Isto não é uma síntese do comportamento dos homens e das mulheres. Mas sim uma certeza – o que não proíbe toda a espécie de averbamentos necessários à verdade.

Nietzsche, imoralista por definição, disse que não há nada mais contrário ao gosto do que o homem que deseja.

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A Doutrina Perfeita

Muitas vezes as pessoas dirigem-se a mim, dizendo: «você, que é independente». Não sou assim; continuamente devo ceder a pequenas fórmulas sofisticadas que corrompem, que dão um sentido inverso à nossa orientação, que fazem com que a transparência do coração se turve. Continuamente a nossa insegurança, o egoísmo, o espírito legalista, a mesquinhez, a vaidade, toda a espécie de circunstâncias que tomam o partido da vida como desfrute à sensação se sobrepõem à luz interior. Só a fé é independente. Só ela está para além do bem e do mal.

Estar para além do bem e do mal aplica-se a Cristo. «Perdoa ao teu inimigo, oferece a outra face» – disse Ele. Não é um conselho para humilhados, não é um preceito para mártires. Nisso aparece Cristo mal interpretado, a ponto de o cristianismo ter sido considerado uma religião de escravos. Mas esquecemos que Cristo, como Homem, teve a experiência-limite, uma visão do inconsciente absoluto, o que quer dizer que a sua consciência foi saturada, para além do bem e do mal. Esse homem que perdoa ao seu inimigo não o faz por contrariedade do seu instinto, por reparação dos seus pecados; mas porque não pode proceder de outra maneira.

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A Psicologia do Medo

O medo é o que impede que tudo o que chega às maõs dos homens não se torne em sua propriedade. Basta produzir uma impressão que não se pode explicar, inserindo no medo o desconforto da culpa. É assim que milhões de pessoas podem ser pastoreadas nas ribeiras da paz por muito poucas. E nas trincheiras da guerra por outras tantas, senão as mesmas.

Novo Ano

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse no ventre morte, peste e guerra. Morte à senilidade idealista e à retórica embalsamada; peste para um certo código cultural que age sobre os grupos e os transforma em colectividades emocionais; guerra à recuperação da personalidade duma cultura extinta que nada tem a ver com a cultura em si mesma.

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse nos braços a vida, a energia e a paz. Vida o suficientemente despersonalizada no caudal urbano para que os desvios individuais não sejam convite ao eterno controlo e expressão das pessoas; energia para desmascarar o sectarismo da sociedade secularizada em que o estado afectivo é mais forte do que a acção; paz para os homens de boa e de má vontade.

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A Construção da Personalidade Criadora

A harmonia do comportamento social requer, todos o sabemos, tanto o isolamento como o convívio. Excessiva comunicação, debates exagerados de assuntos que requerem meditação e peso moral, avesso muitas vezes à cordialidade natural das afinidades electivas, não enriquecem o património de uma sociedade. Antes embotam e alteram o terreno imparcial da sabedoria.
A solidão favorece a intensidade do pensamento; por outro lado, torna de certo modo celerado o homem que lida com a força material, com a técnica, com os outros homens. O impulso é a força que actualiza estas duas atitudes. Os ricos de impulso que se prontificam a uma reacção agressiva ou escandalosa, esses são associais especialmente difíceis. Todo o revolucionário é associal, se o impulso for nele um desvio da vida instintiva, e não uma atitude de homem capaz de obedecer e mandar a si próprio.
«A felicidade máxima do filho da terra há-de ser a personalidade» – disse Goethe. Personalidade criadora, obtida à custa do ajustamento das nossas próprias leis interiores, que não serão mais, no futuro, forças repelidas ou encobertas, mas sim valiosas contribuições para o tempo do homem. Quando tudo for analisado e conhecido, só o justo há-de prevalecer.

O Português

Prefere ser um rico desconhecido, a ser um herói pobre. É melhor do que parece. O homem português é dissimulado, e fez da inveja um discurso do bom senso e dos direitos humanos.
Mas é também um homem de paixões moderadas pela sensibilidade, o que faz dele um grande civilizado.
Gosta das mulheres, o que explica o estado de dependência em que as pretende manter. A dependência é uma motivação erótica.
É inovador mas tem pouco carácter, como é próprio dos superiormente inteligentes, tanto cientistas, como filósofos e criadores em geral.
Mente muito, e a verdade que se arroga é uma culpa inibida. Vemos que ele se mantém num estado primitivo quando defende a sua área de partido, de seita e de família, à custa de corrupções e de crimes, se for preciso.
Gosta do poder mas não da notoriedade. Não tem o sentido da eternidade, mas sim o prazer da liberdade imediata. Não é democrata; excepto se isso intimidar os seus adversários.
Não tem génio, tem habilidade.
É imaginativo mas não pensador.
É culto mas não experiente.
Não gosta da lei, porque ela desvaloriza a sua própria iniciativa. É místico com a fábula e viril com a desgraça.

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O Que é Escrever?

Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de indignação social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque a poética precisão de dum acto humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.

A Herança dos Empresários

Hoje em dia o sector opulento, que é quase unicamente integrado pelos empresários, só ele tem a posição de homens livres. Aos artistas e aos pensadores resta, na maioria dos casos, o recurso a serem integrados no funcionalismo público para salvaguardarem uma relativa decência económica. O empresário não está preparado para se pronunciar como director intelectual da sociedade; a sua filosofia de vida é incoerente e, muitas vezes, suspeita. Deixará uma herança datada, mas não uma obra confidencial para as futuras gerações que irão propagá-la e, com tal, merecer no mundo o seu êxito moral face aos outros povos.

Crónica de Natal

Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu – eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é isto é duma complexidade que o código civil não alcança.

Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!» Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do trato social através dos seus conflitos próprios,

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Os que Morrem por Amor

Os que morrem por amor continuam a pertencer à lenda. Os seus funerais arrastam uma multidão piedosa, tal como decerto aconteceu na cidade de Verona, há seiscentos anos. Ainda que nesse tempo os costumes fossem bastante fáceis, a prática erótica da juventude era muito mais modesta. Reflectindo melhor, é de crer que a própria licença produzisse um tipo de pessoas orgulhosas da sua intimidade afectiva; o que, se não é virtude, algo se parece. Este orgulho da própria intimidade conduz a uma atitude hostil em relação a tudo o que pode burocratizar os sentimentos. Há um sociólogo inclinado a crer que existe muito de romantismo burocrático no amor moderno. É possível. E quando aparecem os contestatários dessa espécie de burocracia, como são os Romeus e Julietas do Candal, a cidade fica-lhes agradecida. No campo dos afectos trata-se da luta obstinada que resulta do choque entre a vida privada e o regime governativo; entre um corpo animado de impulsos e uma autoridade explicada por leis. Através de inquéritos feitos nos meios juvenis para inquirir das transformações que se efectuam no âmbito das relações afectivas, deparam-se declarações bastante confusas. Elas pairam entre uma sinceridade elementar que descura a experiência e teorias perfeitamente viciadas nos lugares-comuns do século.

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Com os Costumes andam os Aforismos

Com os costumes andam os aforismos. Assim, eis que eles tomam um carácter mais criticador e vibrante, isto na linguagem de Karl Kraus, homem sagaz e ventríloquo de certas causas que a sociedade não confia à voz pública.
Ele diz, por exemplo: «As mulheres, no Oriente, têm maior liberdade. Podem ser amadas». Ou então: «A vida de família é um ataque à vida privada». Ou ainda: «A democracia divide os homens em trabalhadores e preguiçosos. Não está destinada para aqueles que não têm tempo para trabalhar». Tudo isto, como axioma, lembra Bernard Shaw, esse inglês azedo e endiabrado cujo Manual do Revolucionário fez o encanto da nossa adolescência.
Todavia, o aforimo do homem de letras, se impressiona, quase nunca comove ninguém. O autêntico aforismo não é uma arte – é uma espécie de pastorícia cultural. Não está destinado a divertir nem a chocar as pessoas, mas, acima de tudo, propõe-se transmitir uma orientação. É uma lição, e não o pretexto para uma pirueta.
Os aforismos e paradoxos de Karl Kraus têm esse sabor irreverente que se diferencia da sabedoria, porque há algo de precipitado na sua confissão. Precisam de ser situados num estado de espírito, para serem aceites e compreendidos;

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A Fidelidade é a mais Integral de todas as Virtudes Humanas

A fidelidade (…) é a mais integral de todas as virtudes humanas. O homem participa numa batalha e, sem a fidelidade, não conhece a sua luta; apenas usa da violência, interpreta uma vontade, é instrumento de uma opinião. A fidelidade move-o desde a sua origem, é a primeira condição da consciência. Não se efectuam coisas novas sem fidelidade. Não se engrandece a piedade ou se priva com o mais simples sentimento, sem a fidelidade. Uma acção progressiva tem que ter raízes tumulares, raízes naquilo que encerrámos definitivamente – uma era, um conhecimento, uma arte, uma maneira de viver. A fidelidade, disse eu, assegura-nos o tempo de criar e o tempo de destruir o que se tornou inconforme à imagem do homem. Nada é digno de valor, sem fidelidade.