Passagens de António Nobre

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Poveiro

Poveirinhos! meus velhos pescadores!
Na Agoa quizera com vocês morar:
Trazer o lindo gorro de trez cores,
Mestre da lancha Deixem-nos passar!

Far-me-ia outro, que os vossos interiores
De ha tantos tempos, devem já estar
Calafetados pelo breu das dores,
Como esses pongos em que andaes no mar!

Ó meu Pae, não ser eu dos poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mail-Irmão do «Senhor de Mattozinhos»!

No alto mar, ás trovoadas, entre gritos,
Promettermos, si o barco fôri intieiro,
Nossa bela á Sinhora dos Afflictos!

Ó Virgens!

Ó virgens que passaes, ao sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente
Que me transporte ao meu perdido lar…

Cantae-me, n’essa voz omnipotente,
O sol que tomba, aureolando o mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formozura, o luar!

Cantae! cantae as limpidas cantigas!
Das ruinas do meu lar desatterrae
Todas aquellas illuzões antigas

Que eu vi morrer n’um sonho, como um ai…
Ó suaves e frescas raparigas;
Adormecei-me n’essa voz… Cantae!

O Primeiro Filho

A virgem de ontem é já hoje mãe:
O leito azul e branco do noivado
Ei-lo, em bem pouco tempo, transformado
Num berço onde existe mais alguém.

Na rósea alcova atapetada, além,
Uma velhota, ex-noiva do passado,
Beijando o pequenito com cuidado,
Diz: — Bom tempo em que eu fui assim, também.

No entanto a boa mãe cheia de Graça,
Estende-se no leito, exausta e lassa,
Cercada duma auréola de luz.

E beijando o filhito que adormece,
Olhada assim, de súbito, parece
A Virgem Mãe a acalentar Jesus…

A Poezia do Outomno

Noitinha. O sol, qual brigue em chammas, morre
Nos longes d’agoa… Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poezia escorre
E os bardos, a sonhar, molham a penna!

Ao longe, os rios de agoas prateadas
Por entre os verdes cannaviaes, esguios,
São como estradas liquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!

Os choupos nus, tremendo, arripiadinhos,
O chale pedem a quem vae passando…
E nos seus leitos nupciaes, os ninhos,
As lavandiscas noivam piando, piando!

O orvalho cae do céu, como um unguento.
Abrem as boccas, aparando-o, os goivos…
E a larangeira, aos repellões do vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.

E o orvalho cae… E, á falta d’agoa, rega
O val sem fruto, a terra arida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe, prega
O seu Sermão de Lagrymas, á Lua!

Tardes de outomno! ó tardes de novena!
Outubro! Mez de Maio, na lareira!
Tardes…
Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos céus, a eterna freira!

Quando Chegar a Hora

Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abbade,
Oiça isto que lhe peço:
Mande-me abrir, alli, uma cova á vontade,
Olhe: eu mesmo lh’a meço…

O coveiro é podão, fal-as sempre tão baixas…
O cão pode lá ir:
Diga ao moço, que tem a pratica das sachas,
Que m’a venha elle abrir.

E o sineiro que, em vez de dobrar a finados,
Que toque a Alléluia!
Não me diga orações, que eu não tenho peccados:
A minha alma é dia!

Será meu confessor o vento, e a luz do raio
A minha Extrema-Uncção!
E as carvalhas (chorae o poeta, encommendae-o!)
De padres farão.

Mas as aguias, um dia, em bando como astros,
Virão devagarinho,
E hão-de exhumar-me o corpo e leval-o-ão de rastros,
Em tiras, para o ninho!

E ha-de ser um deboche, um pagode, o demonio,
N’aquelle dia, ai!
Aguias! sugae o sangue a vosso filho Antonio,
Sugae! sugae! sugae!

Raro têm de comer. A pobreza consome
As aguias, coitadinhas!
Ao menos, n’esse dia, eu matarei a fome
A essas desgraçadinhas…

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Menino e Moço

Tombou da haste a flor da minha infancia alada,
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos céus Sta Aguia, linda fada,
Que d’antes estendia as azas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz d’essa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa vizão de luar que vivia encantada,
N’um castello de prata embutido a marfim!

Mas, hoje, as aguias de oiro, aguias da minha infancia,
Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no céu evolam-se, a distancia!

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:
Voltam na aza do vento os ais que a alma chora;
Ellas, porém, Senhor! ellas não voltam mais…

Pobre Tysica!

Quando ella passa á minha porta,
Magra, livida, quazi morta,
E vae até á beira-mar,
Labios brancos, olhos pizados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração poe-se a chorar…

Perpassa leve como a folha,
E suspirando, ás vezes, olha
Para as gaivotas, para o Ar:
E, assim, as suas pupillas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as azas para voar!

Veste um habito cor de leite,
Saiinha liza, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
«Noiva feliz, que vaes cazar…»

Triste, acompanha-a um Terra-Nova
Que, dentro em pouco, á fria cova
A irá de vez acompanhar…
O chão desnuda com cautella,
Que Boy conhece o estado d’ella:
Quando ella tosse, poe-se a uivar!

E, assim, sósinha com a aia,
Ao sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bébés, que é o seu logar…
E o Oceano, tremulo avôzinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vem ter com ella a conversar…

Fallam de sonhos, de anjos,

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O Sr. Abbade

Quando vem Junho e deixo esta cidade,
Batina, Caes, tuberculozos céus,
Vou para o Seixo, para a minha herdade:
Adeus, cavaco e luar! choupos, adeus!

Tomo o regimen do Sr. Abbade,
E faço as pazes, elle o quer, com Deus.
No seu direito olhar vejo a bondade,
E ás capellinhas vou ver os judeus.

Que homem sem par! Ignora o que são dores!
Para elle uma ramada é o pallio verde,
Os cachos d’uvas são as suas flores!

Ao seu passal chama elle o mundo todo…
Sr. Abbade! olhe que nada perde:
Viva na paz, ahi, longe do lodo.

O Somno de João

O João dorme… (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria… um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores…
Mas os astros são menores!

O João dorme… Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho…
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…

O João dorme… Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é…

Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir…
Tudo vae sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho… até morrer!

E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João!

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Enterro de Ophelia

Morreu, Vae a dormir, vae a sonhar… Deixal-a!
(Fallae baixinho: agora mesmo se ficou…)
Como padres orando, os choupos formam ala,
Nas margens do ribeiro onde ella se afogou…

Toda de branco vae, n’esse habito de opala,
Para um convento: não o que o Hamlet lhe indicou,
Mas para um outro, horror! que tem por nome Valla,
D’onde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou!…

O lindo Por-do-Sol, que era doido por ella,
Que a perseguia sempre, em palacio e na rua,
Vede-o, coitado! mal pode suster a vela…

Como damas de honor, nymphas seguem-lhe os rastros,
E, assomando no céu, sua Madrinha, a Lua,
Por ella vae desfiando as suas contas, Astros!

Natal d’um Poeta

Em certo reino, á esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa-fé, n’uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!

E, embora eu seja descendente, um ramo
D’essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:

Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th’reza… Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

A Vida

Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d’Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n’um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!

Ó Quarta-feira de Trevas!

Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas…
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d’Agosto!
Luas d’Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras,

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Ballada do Caixão

O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte:
Ponteia e coze, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de velludo
Flandres gentil, pinho do Norte…
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vae a aborrecer,
Fui-me lá, hontem: (era Entrudo,
Havia immenso que fazer!…)
– Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? – Vamos ver…
Olhou, mexeu na caza toda…
– Eis aqui um e bem barato.

– Está na moda? – Está na moda.
(Gostei e nem quiz apreçal-o:
Muito justinho, pouca roda…)
– Quando posso mandar buscal-o?
– Ao por-do-sol. Vou dal-o a ferro:
(Poz-se o bom homem a aplainal-o…)

Ó meus amigos! salvo-erro,
Juro-o pela alma, pelo céu!
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dandy, olhae! do que eu!

Os Figos Pretos

– Verdes figueiras soluçantes nos caminhos!
Vós sois odiadas desde os seculos avós:
Em vossos galhos nunca as aves fazem ninhos,
Os noivos fogem de se amar ao pé de vós!

– Ó verdes figueiras! ó verdes figueiras
Deixae-o fallar!
Á vossa sombrinha, nas tardes fagueiras,
Que bom que é amar!

– O mundo odeia-vos. Ninguem nos quer, vos ama:
Os paes transmittem pelo sangue esse odio aos moços.
No sitio onde medraes, ha quazi sempre lama
E debruçaes-vos sobre abysmos, sobre poços.

– Quando eu for defunta para os esqueletos,
Ponde uma ao meu lado:
Tristinha, chorando, darà figos pretos…
De luto pezado!

– Os aldeões para evitar vosso perfume
Sua respiração suspendem, ao passar…
Com vossa lenha não se accende, á noite, o lume,
Os carpinteiros não vos querem aplainar.

– Oh cheiro de figos, melhor que o do incenso
Que incensa o Senhor!
Podesse eu, quem dera! deital-o no lenço
Para o meu amor…

– As outras arvores não são vossas amigas…
Mãos espalmadas, estendidas, supplicantes,

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Continua a Tempestade

Aqui, sobre estas aguas cor de azeite,
Scismo em meu lar, na paz que lá havia:
Carlota, á noite, ia ver se eu dormia
E vinha, de manhã, trazer-me o leite…

Aqui, não tenho um unico deleite!
Talvez… baixando, em breve, á Agoa fria,
Sem um beijo, sem uma Ave-Maria,
Sem uma flor, sem o menor enfeite…

Ah! podesse eu voltar á minha infancia!
Lar adorado, em fumos, a distancia,
Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar…

Minha velha aia! conta-me essa historia
Que principiava, tenho-a na memoria,
«Era uma vez…»
Ah deixem-me chorar!

Ai de Mim!

Venho, torna-me velho esta lembrança!
D’um enterro d’anjinho, nobre e puro:
Infancia, era este o nome da criança
Que, hoje, dorme entre os bichos, lá no escuro…

Trez anjos, a Chymera, o Amor, a Esperança
Acompanharam-n’o ao jazigo obscuro,
E recebeu, segundo a velha usança,
A chave do caixão o meu Futuro.

Hoje, ambulante e abandonada Ermida,
Leva-me o fado, á bruta, aos empurrões,
Vá para a frente! Marcha! Á Vida! Á Vida!

Que hei-de fazer, Senhor! o qu’é que espera
Um bacharel formado em illuzões
Pela Universidade da Chymera?

Tempestade!

O meu beliche é tal qual o bercinho,
Onde dormi horas que não vêm mais.
Dos seus embalos já estou cheiinho:
Minha velha ama são os vendavaes!

Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho.
O vapor treme! Abraço a Biblia, aos ais…
Covarde! Que dirá teu Avôzinho,
Que foi moreante? Que dirão teus Paes?

Coragem! Considera o que has soffrido,
O que soffres e o que ainda soffrerás,
E ve, depois, se accaso é permittido

Tal medo á Morte, tanto apego ao mundo:
Ah! fôra bem melhor, vás onde vás,
Antonio, que o paquete fosse ao fundo!

Vaidade, Tudo Vaidade!

Vaidade, meu amor, tudo vaidade!
Ouve: quando eu, um dia, for alguem,
Tuas amigas ter-te-ão amizade,
(Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm.

Vaidade é o luxo, a gloria, a caridade,
Tudo vaidade! E, se pensares bem,
Verás, perdoa-me esta crueldade,
Que é uma vaidade o amor de tua mãe…

Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna
E eu vi-me só no mar com minha escuna,
E ninguem me valeu na tempestade!

Hoje, já voltam com seu ar composto,
Mas eu, ve lá! eu volto-lhes o rosto…
E isto em mim não será uma vaidade?

Vae para um Convento!

Falhei na Vida. Zut! Ideaes caidos!
Torres por terra! As arvores sem ramos!
Ó meus amigos! todos nós falhamos…
Nada nos resta. Somos uns perdidos.

Choremos, abracemo-nos, unidos!
Que fazer? Porque não nos suicidamos?
Jezus! Jezus! Resignação… Formamos
No mundo, o Claustro-pleno dos Vencidos.

Troquemos o burel por esta capa!
Ao longe, os sinos mysticos da Trappa
Clamam por nós, convidam-nos a entrar…

Vamos semear o pão, podar as uvas,
Pegae na enxada, descalçae as luvas,
Tendes bom corpo, Irmãos! Vamos cavar…

À Luz da Lua!

Iamos sós pela floresta amiga,
Onde em perfumes o luar se evola,
Olhando os céus, modesta rapariga!
Como as crianças ao sair da escola.

Em teus olhos dormentes de fadiga,
Meio cerrados como o olhar da rola,
Eu ia lendo essa ballada antiga
D’uns noivos mortos ao cingir da estola…

A Lua-a-Branca, que é tua avozinha,
Cobria com os seus os teus cabellos
E dava-te um aspeto de velhinha!

Que linda eras, o luar que o diga!
E eu compondo estes versos, tu a lel-os,
E ambos scismando na floresta amiga…