Citação de

Certa Velhinha

1

Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que triste velhinha que vae a passar!
NĂŁo leva candeia; hoje, o cĂ©u nĂŁo tem luzes…
Cautella, velhinha, não vás tropeçar!

Os ventos entoam cantigas funestas,
Relampagos tingem de vermelho o Azul!
Aonde irá ella, n’uma noite d’estas,
Com vento da Barra puxado do sul?

Aonde irá ella, pastores! boieiras!
Aonde irá ella, n’uma noite assim?
Se for un phantasma, fazei-lhe fogueiras,
Se for uma bruxa, queimae-lhe alecrim!

Contava-me aquella que a tumba já cerra,
Que Nossa Senhora, quando a chama alguem,
Escolhe estas noites p’ra descer á Terra,
Porque em noites d’estas nĂŁo anda ninguem…

Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que linda velhinha que vem a passar!
E que olhos aquelles que parecem luzes!
Quaes velas accezas que a vĂŞm a guiar…

Que pobre capinha que leva de rastros,
TĂŁo velha, tĂŁo rĂ´ta! Que triste viuvez!
Mas se lhe dá vento, meu Deus! tantos astros!
É o cĂ©u estrellado vestido do envez…

Seu alvo cabello, molhado das chuvas,
Parece uma vinha de luar em flor…
Oh cabello em cachos, como cachos de uvas!
So no cĂ©u ha uvas com aquella cor…

A luz dos seus olhos Ă© uma luz tamanha
Que ao redor espalha divino clarĂŁo!
Parece que chove luar na montanha…
Que noite de inverno que parece verĂŁo!

Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Velhinha tĂŁo alta que vem a chegar!
Parece uma Torre cĂ´ada de luzes!
Ou antes a Torre de Marfim, a andar!

NĂŁo! NĂŁo Ă© uma Torre cĂ´ada de luzes,
Nem antes a Torre de Marfim, a andar,
Que pela tapada das Quatorze Cruzes,
N’uma noite destas, eu vejo passar…

Tambem nĂŁo Ă©, ouve, minha velha ama!
Como tu contavas, a Virgem de Luz:
Digo-te ao ouvido como ella se chama,
Mas guarda segredo, que Ă©…
– Jezus! Jezus!

2

Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Já não é a velhinha que vae a passar:
Um grande cortejo cheiinho de luzes,
Anninhas da Eira que vae a enterrar.

Falla d’um pastor:

«Anninhas da Eira! Anninhas da Eira!
Cantae, raparigas, cantae e chorae!
Morreu, coitadinha! sorrindo, trigueira,
Como um passarinho, sem soltar um ai.

Quando era pequeno, levava-me á escola,
E quando, mais tarde, cresci e medrei,
Oh danças nas eiras, ao som da viola!
Nas danças de roda, que beijos lhe dei!

Os annos vieram, os annos passaram,
Meu fado arrastou-me, da aldeia sai:
Nunca mais meus olhos seus olhos tocaram,
Perdi-a de todo, nunca mais a vi…

E além, na tapada das Quatorze Cruzes,
N’uma noite d’estas com vento a ventar,
Ă“ meu Deus! Ă© ella que vae entre luzes!
Ă“ meu Deus! Ă© a Anninhas que vae a enterrar!

Olá! bons senhores, vestidos de preto,
Deixae a defunta, que a levarei eu!
O suor alagava-vos, eu levo o carreto…
O caixĂŁo de Anninhas Ă© tambem o meu!

Tenho os relampagos, deixae-me sem velas
A rezar por ella, sob o temporal!
Cai-me no peito, cravae-m’as, procellas!
Cruzes da tapada, em forma de punhal!»

Mas os bons senhores, de preto vestidos,
Cigarros accezos, e velas na mĂŁo,
Lá passam ao vento, com sete sentidos,
Com medo que, ás vezes, nĂŁo seja um ladrĂŁo…

«Mãos das ventanias! mãos das ventanias!
Tirae-lhes a Anninhas e levae-a a Deus!
Com suas mĂŁosinhas, agora tĂŁo frias,
Irá na viagem a dizer-me adeus…

Ă“ vento que passas! corcel de rajada!
Assenta-nos ambos no mesmo selim:
Quero ir mais ella na longa jornada…
Quero ir com Anninhas pelo céu sem fim!

Ó Leste, que trazes as rolas, ás costas,
Quaes rolas, leva-nos aos pés do Senhor!
Quero ir como ella, assim de mĂŁos postas…
Quero ir com Anninhas para onde ella for!

Ó Norte dos Marços! ó Sul das procellas,
Levae-nos quaes brigues, como azas, levae!
Levae-nos como aguias, levae-nos quaes velas…
Quero ir com Anninhas para onde ella vae!»

3

Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que triste velhinha que vae a passar!
E que olhos aquelles que parecem luzes…
Aonde irá ella? Quem irá buscar?