Arrojos
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos noturnos.Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Passagens sobre Montanhas
187 resultadosO Retiro da Alma
Há quem procure lugares de retiro no campo, na praia, na montanha; e acontece-te também desejar estas coisas em grau subido. Mas tudo isto revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos. Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de arruídos, que na alma, sobretudo quando se tem dentro dela aqueles bens sobre que basta inclinar-se para que logo se recobre toda a liberdade de espírito, e por liberdade de espírito, outra coisa não quero dizer que o estado de uma alma bem ordenada. Assegura-te constantemente um tal retiro e renova-te nele. Nele encontrarás essas máximas concisas e essenciais; uma vez encontradas dissolverão o tédio e logo te hão-de restituir curado de irritações ao ambiente a que regressas.
É nas almas simples que o amor é mais puro e mais forte. O manancial de águas claras que na planície vai matar sedes e reverdecer os campos, jorra do seio das duras pedras das montanhas em sítios agrestes, longe e alto!
A Quimera da Felicidade
(…) do alto de uma montanha, inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que não lhe podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, – flagelos e delícias, – desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba,
O caçador furtivo vive nas matas; o contrabandista nas montanhas ou no mar. As cidades produzem homens ferozes porque corrompem. A montanha, o mar e a mata, criam homens selvagens.
Elevação
Por cima dos paúes, das montanhas agrestes,
Dos rudes alcantis, das nuvens e do mar,
Muito acima do sol, muito acima do ar,
Para além do confim dos páramos celestes,Paira o espírito meu com toda a agilidade,
Como um bom nadador, que na água sente gozo,
As penas a agitar, gazil, voluptuoso,
Através das regiões da etérea imensidade.Eleva o vôo teu longe das montureiras,
Vai-te purificar no éter superior,
E bebe, como um puro e sagrado licor,
A alvinitente luz das límpidas clareiras!Neste bisonho dai’ de mágoas horrorosas,
Em que o fastio e a dor perseguem o mortal,
Feliz de quem puder, numa ascensão ideal,
Atingir as mansões ridentes, luminosas!De quem, pela manhã, andorinha veloz,
Aos domínios do céu o pensamento erguer,
— Que paire sobre a vida, e saiba compreender
A linguagem da flor e das coisas sem voz!Tradução de Delfim Guimarães
Não existe nenhum passeio fácil para a liberdade em lado nenhum, e muitos de nós teremos que atravessar o vale da sombra da morte vezes sem conta até que consigamos atingir o cume da montanha dos nossos desejos.
A Fonte da Harmonia
A boa disposição e a alegria de um cão, o seu amor incondicional pela vida e a prontidão dele para a celebrar a todo o momento contrasta muito com o estado de espírito do dono – deprimido, ansioso, sobrecarregado de problemas, perdido em pensamentos, ausente do único lugar e do único tempo que existe: o Aqui e o Agora. E uma pessoa interroga-se: vivendo com alguém assim, como consegue o cão manter-se tão equilibrado e são, tão cheio de alegria?
Quando apreendemos a Natureza apenas através da mente, do pensamento, não somos capazes de sentir a sua força de viver e de existir. Vemos somente a parte física, a matéria, e não nos apercebemos da vida interior – o mistério sagrado. O pensamento reduz a Natureza a uma mercadoria que se usa na busca de benefícios ou de conhecimento ou de qualquer outro fim utilitário. A floresta ancestral passa a ser vista apenas como madeira, o pássaro como um objecto de investigação, a montanha como alguma coisa para se explorar ou conquistar.
Quando se apreende a Natureza, deve-se permitir que hajam momentos sem pensamento, sem a intervenção da mente. Ao aproximarmo-nos da Natureza desta maneira, ela responde-nos e,
Redenção
I
Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n’um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento…Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha…
Almas irmãs da minha, almas cativas!II
Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares…Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D’esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares…Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão…
E acabará por fim vosso tormento.
No Alto
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.Então, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,Ariel se desfaz sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.
Os Vencidos
Tres cavaleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cae a noite do céo, pesadamente.Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Têm os corceis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhe cae o sangue, em gotas.A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As fontes lhes curvou, com mão potente.
No horisonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.E o primeiro dos três, erguendo os braços,
Diz n’um soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!Com largo vôo, penetrei na esphera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu halito rude e queimador!A flor rubra e olorosa da paixão
Abre languida ao raio matutino,
Mas seu profundo calix purpurino
Só reçuma veneno e podridão.
Insistimos em ver o cisco no olho, e esquecemos as montanhas, os campos e as oliveiras.
Amo-te
Talvez não seja próprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. Não creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notícia? À sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores não deverão impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderão diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. E possível que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razão.
Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa de ser entendido.
O Amor e o Tempo
Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.— «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento…
— «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» — Nesse momento,Volta-se o Amor e diz com azedume:
— «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo… Adeus! Adeus!
Não Voltarás
não voltarás
olhando as ruas
na vidraça nua os zimbros
da terra ocremoras secreta nestes barros
tua flauta canta nas montanhas
pedras e trepadeiras se enroscam
perto do teu rosto
e são de
águasabes plantar o odor
dos frutos
tangerina limão
pássaras orvalho
a nervura das manhãs
e o lume dos poemas
quente metalurgia
das palavrascomo ontem (tu eras morta)
prolonga-te nestas mãos
no maio das rotas
de abril
tecidas
Ainda que seus passos pareçam inúteis; vá abrindo caminhos como a água que desce cantando da montanha. Outros te seguirão…
Debaixo das Oliveiras
Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.O mês em que a brisa me pôs nas mãos
uma harpa de folhas
e a terra me emprestou
sua flauta e sua lua.
Maré viva. Meu sangue atravessado
por um cometa visível a olho nu
tangido por satélites e aves de arribação
navegado por peixes desconhecidos.Este foi o mês em que cantei
como quem morre e ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba.O mês em que subi a uma colina
dentro de minha casa
olhei a terra e o mar
depois cantei
como quem faz com duas pedras
o primeiro lume. Palavras
e pedras. Palavras e lume
de uma vida.Este foi o mês em que fui a um lugar santo
dentro de minha casa.
O mês em que saí dos campos
e me banhei no rio como quem se baptiza
e cantei debaixo das oliveiras
as mãos cheias de terra. Palavras
e terra
de uma vida.Este foi o mês em que cantei
como quem espelha ao vento suas cinzas
e cresce de seu próprio adubo
carregado de folhas.
O Significado do Amor
Eu pensava que conhecia o significado do amor. O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.
O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. A tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.
Eu acreditava mesmo que o amor é o sangue do sol dentro do sol.
Clamor Supremo
Vem comigo por estas cordilheiras!
Põe teu manto e bordão e vem comigo,
Atravessa as montanhas sobranceiras
E nada temas do mortal Perigo!Sigamos para as guerras condoreiras!
Vem, resoluto, que eu irei contigo
Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,
Só tendo a Natureza por abrigo.Rasga florestas, bebe o sangue todo
Da Terra e transfigura em astros lodo,
O próprio lodo torna mais fecundo.Basta trazer um coração perfeito,
Alma de eleito, Sentimento eleito
Para abalar de lado a lado o mundo!
A Cantiga do Optimismo
Não embarquem na cantiga do optimismo. Sempre que possível, vejam as coisas pelo lado ruim. Desejem o melhor, mas não deixem nunca de esperar o pior. E saibam que dois terços das conquistas do Homem se fizeram, mais do que pelo optimismo dos seus autores, em resultado do pessimismo dos vizinhos daqueles. Os compêndios irão contra vós. Dir-vos-ão que são cínicos, escapistas, pobres cultores da ideia de supremacia do mal sobre o bem, tristes conformistas destinados ao imobilismo e mais nada. Não acreditem. Se há uma coisa capaz de mover montanhas, é ter ao lado um sacana a dizer «Não consegues, pá, dês as voltas que deres não consegues» – e, aliás, nós próprios concordarmos com ele. Em todo o caso, o mal exerce efectivamente supremacia sobre o bem. Vocês sabem que as crianças choram antes de rir – e que. muito antes de aprenderem o potencial sedutor de um sorriso, já conhecem as virtudes chantagísticas de uma boa gritaria.
Não pensem que o método é meu. Insinuou-o Voltaire, no seu Candide, à revelia dos optimistas taralhoucos que vieram antes e depois dele, como Leibniz ou Godwin. Gramsci tratou da exegese. O verdadeiro segredo? O verdadeiro método? «É preciso atrair violentamente a atenção para o presente do modo como ele é.