Paisagem Única
Olhas-me tu: e nos teus olhos vejo
Que eu sou apenas quem se vê: assim
Tu tanto me entregaste ao teu desejo
Que é nos teus olhos que eu me vejo a mim.Em ti, que bem meu corpo se acomoda!
Ah! quanto amor por os teus olhos arde!
Contigo sou? — perco a paisagem toda…
Longe de ti? — sou como um dobre à tarde…Adeuses aos casais dessas Marias
Em cuja graça o meu olhar flutua,
Tudo o que amei ao teu amor o entrego.Choupos com ar de velhas Senhorias,
Castelo moiro donde nasce a Lua,
E apenas tu, a tudo o mais sou cego.
Passagens de Afonso Duarte
15 resultadosHora Mística
Noite caindo … Céu de fogo e flores.
Voz de Crepúsculo exalando cores,
O céu vai cheio de Deus e de harmonia.
Silêncio … Eis-me rezando aos fins do dia.Névoa de luz criando imagens na água,
Nome das águas esculpindo os céus,
Tarde aos relevos húmidos de frágua,
Boca da noite, eis-me rezando a Deus.Eis-me entoando, a voz de cinza e ouro,
— Oh, cores na água vindo às mãos em branco! —
Minha ópera de Sol ao último arranco.E, oh! hora mística em que o olhar abraso,
— Sol expirando aos Pórticos do Ocaso! —
Dobra em meu peito um oceano em coro.
Horas de Saudade
Vou de luar em rosto, descontente:
Meus olhos choram lágrimas de sal.
— Adeus, terras e moças do casal,
— Adeus, ó coração da minha gente.A hora da saudade é uma serpente:
Quero falar, não posso, e antes que fale
Ela enlaça-me a voz tão cordial
Que as coisas mais me lembram fielmente.Olhos de amora, e uma ave na garganta
Para enfeitiçar a alma quando canta,
Moças com sua parra de avental;Graça, Beleza, um verso sem medida,
A Saudade desterrou-me a vida …
Sou um eco perdido noutro vale.
Carta a um «Amor»
Recordo, Margarida, as tardes quando
Cata no Marão o Sol de Julho!
Meu ranchinho de rolas rorolando,
Vós éreis meu orgulho.O ar como um veludo, os ares tão macios,
Ó tardes do jardim! à fonte da água, aos fios,
íamos todos nós era tão alegre bando
Que desde que eu o não sinto
Sou como um corpo extinto,
Não sinto ora nem quando.E estar de vós tão longe
Cá neste meu terreno onde pareço um monge,
Sem uma linha, um verso
Desse Corgo sem par, a boa e madre
Terra como outra assim não haverá,
Montanhas que no Céu têm aquase o berço!
Escreve, Margarida, ao teu compadre,
Vá!Quero que diga
Florinda como vai, e vai assim Loreto,
Lindo pajem, que linda em seu veludo preto!
E os mais amorzinhos, rapariga,
Os que tua amizade aí me deu!Na alma dum poeta, vê-se nela o céu:
E assim
A tudo, Margarida, o que o prendeu
Arrecada-o na vida, e para a morte.
Escreve mal, e daí,
Noite do Roubo
A quem foram roubar os pobres trapos:
A mim, que sou humilde pobrezinho?
Olhem bem que o valor desses farrapos
Está em ter minha avó fiado o linho.Ó rocas a fiar, contos de fadas!
Eu tinha-lhes amor e a simpatia
Que vem das saudades de algum dia,
Longe, das velhas noites seroadas.Bragais de minha casa, e as roupas feitas
Por mãos de minha mãe, muito me assusta
Que os tomassem perversas mãos suspeitas.Ah! mãos do furto, olhai, trazei-me à justa
Os meus linhos — suor dumas colheitas —
E amor dos meus que a mim muito me custa.
Humana Condição
Um sonhar-me distante, um longe incrível
É agora o meu estado: Eu sonho o Espaço
Que se fixa no mundo ao invisível
Como se o mundo andasse por meu braço,Existo além: Sou o animal temível
De Jesus com o mundo-Deus na mão.
Sou para além do mundo concebível
Onde morre e começa a criação.Eu, homem, sondo e meço o Infinito;
Sou corpo e espírito, esse corpo oculto,
E é só na mão de Deus que ressuscito.E chamam a isto humana condição …
Um nada, e tudo: — Vivo e me sepulto
Dentro e fora do próprio coração.
Erros Meus a que Chamarei Virtude
Erros meus a que chamarei virtude,
Por bem vos quero, e morro despedido
Sem amor, sem saúde, o chão perdido,
Erros meus a que chamarei virtude.A terra cultivei, amargo e rude,
No sonho de melhor a ter servido;
Para ilusão de um palmo de comprido,
A terra cultivei, amargo e rude.E o amor? A saúde? Eis os dois Lagos
Onde os olhos me ficam debruçados
— Azul e roxo, rasos de água os Lagos.Mas direis, erros meus, ainda amores?
— São bonitos os dias acabados
Quando ao poente o Sol desfolha flores.
In Extremis
1
Só a criança conhece a Eternidade
Que é inocência do desconhecido.
E o que me dá saudade
É havê-la em mim perdido.Outra herança de tudo que não sou
Podeis levá-la! Faça-se a vontade:
Que a imortal, perene propriedade,
Perdeu-a o homem quando semeou.Ah! como a onda do mar que é mais bravia
É que abraça os escolhos,
Só terra de poesia
Foi na minh’alma dor, o luto dos meus olhos.Entre o homem e o mundo há um novelo
De linha preta:
Meu acto de Fé é ser criança, e crê-lo,
Que é ser poeta.2
O que levamos da terra
É o céu que possuímos:
Esperança das sepulturas.E à morte que damos vida
Todos os deuses se igualam
Ao mesmo Deus das Alturas.Sê, ó Morte, o meu dia de Juízo
Se é fantasia o que penso
Sonho a terra que piso.Mas quando o corpo, a natureza morta
Me for nas mãos dos homens
Com suas luvas pretas,
Cabelos Brancos
Cobrem-me as fontes já cabelos brancos,
Não vou a festas. E não vou, não vou.
Vou para a aldeia, com os meus tamancos,
Cuidar das hortas. E não vou, não vou.Cabelos brancos, vá, sejamos francos,
Minha inocência quando os encontrou
Era um mistério vê-los: Tive espantos
Quando os achei, menino, em meu avô.Nem caiu neve, nem vieram gelos:
Com a estranheza ingénua da mudança,
Castanhos remirava os meus cabelos;E, atento à cor, sem ter outra lembrança,
Ruços cabelos me doía vê-los …
E fiquei sempre triste de criança.
Provençal
Em um solar de algum dia
Cheiinho de alma e valia,
Foi ali
Que ao gosto de olhos a viComo dantes inda vasto
Agora
Não tinha pombas nem mel.
E à opulência de outrora,
Esmoronado e já gasto,
Pedia mãos de alvenel.Foi ali
Que ao gosto de olhos a vi.O seu chapéu, que trazia
Do calor contra as ardências,
Era o que a pena daria
Num certo sabor e arrimo
Com jeitos de circunferências
A morrer todas no cimo.Davam-lhe franco nos ombros
As pontas do lenço branco:
E sem que ninguém as ouça,
Eram palavras da moça
Com a voz alta de chamar;Palavras feitas em gesto,
Igualzinho e manifesto,
Como um relance de olhar.E bela, fechada em gosto,
Fazia o seu rosto dela
A gente mestre de amar.Foi num solar de algum dia,
Cheiinho de alma e valia,
Que eu disse de mim para ela
Por este falar assim:Vem, meu amor!
Riso
Tive o jeito de rir, quando menino,
Até beber as lágrimas choradas:
Com carantonhas, gestos, desatino,
Passou a nuvem e os pequenos nadas.A rir de escuridões, de encruzilhadas,
Tornei-me afeito logo em pequenino;
Porque ri é que trago as mãos geladas,
E choro porque ri do meu destino.Vivi de mais num mundo idealizado
Comigo só: E só de mim descreio
Entornava-me riso a luz em cheioQuando o meu mundo foi principiado;
Rio agora que não sei donde me veio
Sempre o mal que me trouxe o bem sonhado.
Cantigas
1
Não há pressas, nem demoras,
No coração das cantigas;
Nem os relógios dão horas
Quando cantam raparigas.2
Como algum dia ando hoje;
Sou o mesmo apaixonado;
Quem disser que o tempo foge
É de nunca ter amado.3
A saudade é queda d’água
Que ao longe quebra, ao bater;
É um compasso de mágoa
Marcado por te não ver.4
Como um adeus de saudade
Não há palavra tão louca:
Dizer adeus, ninguém há-de
Ouvi-lo da minha boca.5
Quem ama liga-se à terra,
Quem canta, ao reino dos céus;
Quem pára que Deus o salve,
Quem anda que vá com Deus.
Amor
Por teu ventre começa a minha vida,
Por teus olhos a estrela que me guia.
Amor, que Deus te salve! — Ave-Maria
Cheia de Graça ó Bem-Aparecida.Por meu e por teu verbo de harmonia
Se fará eterna origem comovida
De outros frutos de Amor! — Ave-Maria,
Senhora da minh’alma apetecida.E meu sangue amoroso e produtivo
Se fará carne e espírito fecundo
À tua imagem noutro corpo vivo.E assim ambos, Amor, iremos ser
Seio da vida originando o mundo
Por teu ventre bendito de Mulher.
Natal
Turvou-se de penumbra o dia cedo;
Nem o sol apertou no meu beiral!
Que longas horas de Jesus! Natal…
E o cepo a arder nas cinzas do brasedo…E o lar da casa, os corações aos dobres,
É um painel a fogo em seu costume!
Que lindos versos bíblicos, ao lume,
Plo doce Príncipe cristão dos pobres!Fulvas figuras pra esculpir em barro:
À luz da lenha, em rubro tom bizarro,
Sou em Presépio com meus pais e irmãosE junto às brasas, os meus olhos postos
Nesta evangélica expressão de rostos,
Ergo em graças a Deus as minhas mãos.
Inscrição
Dos vastos horizontes me invocaram,
Noutras formas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo o amor e pureza dos meus versos.Melodias que os ventos orquestraram
Foram verbo dos átomos dispersos:
Palavras que meus olhos soletraram
Num indizível sonho de universos.Foram aromas das fecundas messes:
Como se tu, ó Terra, mos dissesses
Numa profunda comunhão de mágoas.Geraram-mos os génios das Montanhas
Na sua fé de catedrais estranhas,
Na panteísta devoção das Águas.