Passagens de Camilo Pessanha

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Quando Voltei Encontrei Os Meus Passos

Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a Ășmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
– TĂŁo rediviva! nos meus olhos baços…

Olhos turvos de lĂĄgrimas contidas.
– Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vĂĄrio,
Em redor, como as aves num aviĂĄrio,
AtĂ© que a asita fofa lhes faleça…

Toda essa extensa pista – para quĂȘ?
Se hå de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa…

Desce em Folhedos Tenros a Colina

Desce em folhedos tenros a colina:
Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quais a chama do furor declina…

Oh vem, de branco, do imo da folhagem!
Os ramos, leve, a tua mĂŁo aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,
Refletir virgem a serena imagem.

De silva doida uma haste esquiva.
QuĂŁo delicada te osculou num dedo
Com um aljĂŽfar cor de rosa viva!…

Ligeira a saia… Doce brisa impele-a…
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!
Alma de silfo, carne de camĂ©lia…

Caminho I

Tenho sonhos cruĂ©is; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…

Saudades desta dor que em vĂŁo procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum vĂ©u escuro!…

Porque a dor, esta falta d’harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o cĂ©u d’agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque Ă© sĂł madrugada quando chora.

Se Andava no Jardim

Se andava no jardim
Que cheiro de jasmim!
TĂŁo branca do luar!
…………………………….
…………………………….
…………………………….
Eis tenho-a junto a mim.
Vencida, Ă© minha, enfim,
ApĂłs tanto a sonhar…
Porque entristeço assim?…
NĂŁo era ela, mas sim.
(O que eu quis abraçar),
A hora do jardim…
O aroma de jasmim…
A onda do luar…

FonĂłgrafo

Vai declamando um cĂŽmico defunto.
Uma platéia ri, perdidamente,
Do bom jarreta… E hĂĄ um odor no ambiente.
A cripta e a pĂł, – do anacrĂŽnico assunto.

Muda o registo, eis uma barcarola:
LĂ­rios, lĂ­rios, ĂĄguas do rio, a lua…
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul, – extĂĄtica corola.

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro – o cheiro de junquilhos,
VĂ­vido e agro! – tocando a alvorada…

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. ManhĂŁ. Que eflĂșvio de violetas!

San Gabriel II

Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um montĂŁo de estrelas.

Outra vez vamos! CĂŽncavas as velas,
Cuja brancura, rĂștila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar nĂŁo mais deixes de envolvĂȘ-las!

Vem guiar-nos, Arcanjo, Ă  nebulosa
Que do além mar vapora, luminosa,
E Ă  noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas…
– Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.

O Meu Coração Desce

O meu coração desce,
Um balĂŁo apagado…
_ Melhor fora que ardesse,
Nas trevas, incendiado.
Na bruma fastidienta.
Como um caixĂŁo Ă  cova…
_ Porque antes nĂŁo rebenta
De dor violenta e nova?!
Que apego ainda o sustém?
Átomo miserando…
_ Se o esmagasse o trem
Dum comboio arquejando!…

O inane, vil despojo
Da alma egoĂ­sta e fraca!
Trouxesse-o o mar de rojo,
Levasse-o a ressaca.

Caminho

III

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada…
Eis os nossos bordÔes da caminhada,
Vai jĂĄ rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
TĂŁo virgem nĂŁo o temos na jornada…
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este nĂ©ctar avigora!…

Cada um por seu lado!… Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar sĂł todo o caminho,
Eu posso resistir Ă  grande calma!…

Deixai-me chorar mais e beber mais,
perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fĂ© e sonhar – encher a alma.

Voz Débil que Passas

Voz débil que passas,
Que humĂ­lima gemes
NĂŁo sei que desgraças…
Dir-se-ia que pedes.
Dir-se-ia que tremes,
Unida Ă s paredes,
Se vens, Ă s escuras,
Confiar-me ao ouvido
NĂŁo sei que amarguras…
Suspiras ou falas?
Porque Ă© o gemido,
O sopro que exalas?
Dir-se-ia que rezas.
Murmuras baixinho
NĂŁo sei que tristezas…
_ Ser teu companheiro? _
NĂŁo sei o caminho.
Eu sou estrangeiro.
_ Passados amores? _
Animas-te, dizes
NĂŁo sei que terrores…
Fraquinha, deliras.
_ Projetos felizes? _
Suspiras. Expiras.

VĂȘnus II

Singra o navio. Sob a ĂĄgua clara
VĂȘ-se o fundo do mar, de areia fina…
– ImpecĂĄvel figura peregrina,
A distĂąncia sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparĂȘncia luminosa
Repousam, fundos, sob a ĂĄgua plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrågios, perdiçÔes, destroços!
– Ó fĂșlgida visĂŁo, linda mentira!

RĂłseas unhinhas que a marĂ© partira…
Dentinhos que o vaivĂ©m desengastara…
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…

Foi Um Dia De InĂșteis Agonias

Foi um dia de inĂșteis agonias.
Dia de sol, inundado de sol!…
Fulgiam nuas as espadas frias…
Dia de sol, inundado de sol!…

Foi um dia de falsas alegrias.
DĂĄlia a esfolhar-se, – o seu mole sorriso…
Voltavam ranchos das romarias.
DĂĄlia a esfolhar-se, – o seu mole sorriso…

Dia impressĂ­vel mais que os outros dias.
TĂŁo lĂșcido… TĂŁo pĂĄlido… TĂŁo lĂșcido!…
Difuso de teoremas, de teorias…

O dia fĂștil mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias…
TĂŁo lĂșcido… TĂŁo pĂĄlido… TĂŁo lĂșcido!…

Tatuagens Complicadas Do Meu Peito

Tatuagens complicadas do meu peito:
TrofĂ©us, emblemas, dois leĂ”es alados…
Mais, entre coraçÔes engrinaldados,
Um enorme, soberbo, amor-perfeito…

E o meu brasĂŁo… Tem de oiro, num quartel
Vermelho, um lis; tem no outro uma donzela,
Em campo azul, de prata o corpo, aquela
Que é no meu braço como que um broquel.

Timbre: rompante, a megalomania…
Divisa: um ai, – que insiste noite e dia
Lembrando ruĂ­nas, sepulturas rasas…

Entre castelos serpes batalhantes,
E ĂĄguias de negro, desfraldando as asas,
Que realça de oiro um colar de besantes!

Rufando Apressado

Rufando apressado,
E bamboleado,
Boné posto ao lado,

Garboso, o tambor
Avança em redor
Do campo de amor…

Com força, soldado!
A passo dobrado!
Bem bamboleado!

Amores te bafejem.
Que as moças te beijem.
Que os moços te invejem.

Mas ai, Ăł soldado!
Ó triste alienado!
Por mais exaltado

Que o toque reclame,
NinguĂ©m que te chame…
NinguĂ©m que te ame…

Madalena

…e lhe regou de lĂĄgrimas os pĂ©s e os enxugou com os cabelos da sua cabeça. Evangelho de S. Lucas.

Ó Madalena, ó cabelos de rastos,
LĂ­rio poluĂ­do, branca flor inĂștil…
Meu coração, velha moeda fĂștil,
E sem relevo, os caracteres gastos,

De resignar-se torpemente dĂșctil…
Desespero, nudez de seios castos,
Quem também fosse, ó cabelos de rastos,
EnsangĂŒentado, enxovalhado, inĂștil,

Dentro do peito, abominĂĄvel cĂŽmico!
Morrer tranqĂŒilo, – o fastio da cama…
Ó redenção do mármore anatîmico,

Amargura, nudez de seios castos!…
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama,
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!

Caminho III

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada…
Eis os nossos bordÔes da caminhada,
Vai jĂĄ rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
TĂŁo virgem nĂŁo o temos na jornada…
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este nĂ©ctar avigora!…

Cada um por seu lado!… Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar sĂł todo o caminho,
Eu posso resistir Ă  grande calma!…

Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fĂ© e sonhar – encher a alma.

Rosas de Inverno

Corolas, que floristes
Ao sol do inverno, avaro,
TĂŁo glĂĄcido e tĂŁo claro
Por estas manhĂŁs tristes.

Gloriosa floração,
Surdida, por engano,
No agonizar do ano,
Tão fora da estação!

Sorrindo-vos amigas,
Nos ĂĄsperos caminhos,
Aos olhos dos velhinhos,
Às almas das mendigas!

Desse Natal de invĂĄlidos
Transmito-vos a bĂȘnção,
Com que vos recompensam
Os seus sorrisos pĂĄlidos.

Em um Retrato

De sob o cĂŽmoro quadrangular
Da terra fresca que me hĂĄ de inumar,
E depois de jĂĄ muito ter chovido,
Quando a erva alastrar com o olvido,
Ainda, amigo, o mesmo meu olhar
HĂĄ de ir humilde, atravessando o mar,
Envolver-te de preito enternecido,
Como o de um pobre cĂŁo agradecido.

Caminho

I

Tenho sonhos cruĂ©is; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…

Saudades desta dor que em vĂŁo procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum vĂ©u escuro!…

Porque a dor, esta falta d’harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o cĂ©u d’agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque Ă© sĂł madrugada quando chora.

San Gabriel I

InĂștil! Calmaria. JĂĄ colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que tĂŁo altas nos topes tremularam,
– Gaivotas que a voar desfaleceram.

Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram)
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tĂŁo longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a planĂ­cie azul.

Vem-nos levar Ă  conquista final
Da luz, do Bem, doce clarĂŁo irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!

Floriram por Engano as Rosas Bravas

Floriram por engano as rosas bravas
No inverno: veio o vento desfolhĂĄ-las…
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que hĂĄ pouco me enganavas?

Castelos doidos! TĂŁo cedo caĂ­stes!…
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mĂŁos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vĂŁo tristes!

E sobre nĂłs cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chĂŁo, na acrĂłpole de gelos…

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze _quanta flor! _do céu,
Sobre nĂłs dois, sobre os nossos cabelos?