As Vozes do Silêncio
As estátuas de Olímpia, que tanto contribuem para nos ligar à Grécia, alimentam contudo também, no estado em que chegaram até nós – esbranquiçadas, quebradas, isoladas da obra integral -, um mito fraudulento da Grécia, não sabem resisitir ao tempo como um manuscrito, mesmo incompleto, rasgado, quase ilegível. O texto de Heráclito lança-nos clarões como nenhuma estátua em pedaços pode fazer, porque o significado é nele deposto de maneira diferente, é concentrado de forma diferente do que está concentrado nelas, e porque nada iguala a ductilidade da palavra. Enfim, a linguagem diz, e as vozes da pintura são as vozes do silêncio.
Passagens sobre Vozes
768 resultadosNa Casa Defronte
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.Nada! Não sei…
Um nada que dói…
Misticismo
Há dias, ao passar nas alamedas
Da minha terra, ao darem as trindades,
Pisando folhas, como velhas sedas,
Com os meus olhos cheios de saudades,Há dias, quando eu fui nem sei por onde,
Entre lírios e tristes açucenas,
Às horas em que o sol de nós se esconde,
E repicam os sinos às novenas,Há dias, quando eu fui na tarde exangue,
Ouvindo a minha voz interior,
Faziam recordar gotas de sangue
Os derradeiros raios do sol-pôr.Bendita sejas, tarde harmoniosa,
Tarde da minha fé e do meu desejo,
Branda como uma pétala de rosa,
Ou como o aroma de um antigo beijo.
Sentimento do Tempo
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Que seja doce a espera pelas mensagens, ligações e recadinhos bonitinhos. que seja (mais do que) doce a voz ao falar no telefone.
O Relógio
Ebúrneo é o mostrador: as horas são de prata
Lê-se a firma Breguet por baixo do gracioso
Rendilhado ponteiro; a tampa é enorme e chata:
Nela o esmalte produz um quadro delicioso.Repara: eis um salão: casquilho malicioso
Das festas cortesãs o mimo, a flor, a nata,
Junto a um cravo sonoro a alegre voz desata.
Uma fidalga o escuta ébria de amor e gozo.Rasga-se ampla a janela; ao longe o olhar descobre
O correto jardim e o parque extenso e nobre.
As nuvens no alto céu flutuam como espumas.Da paisagem no fundo, em lago transparente,
Onde se espelha o azul e o laranjal frondente,
Um cisne à luz do sol estende as níveas plumas.
Praia
De repente esse sussurro
de vozes no vento
e não é o mar que fala.De repente essa esperança
e não vem das pedras.De repente o ar se enche
de vozes
e não é a noite que fala.O mar escuta.
Esse Cabra Ou Cabrão, Que Anda Na Berra
Esse cabra ou cabrão, que anda na berra,
Que mamou no Brasil surra e mais surra,
O vil estafador da vil bandurra,
O perro, que nas cordas nunca emperra:O monstro vil que produziste, ó Terra
Onde narizes Natureza esmurra,
Que os seus nadas harmônicos empurra,
Com parda voz, das paciências guerra;O que sai no focinho à mãe cachorra,
O que néscias aplaudem mais que a “Mirra”,
O que nem veio de prosápia forra;O que afina inda mais quando se espirra,
Merece à filosófica pachorra
Um corno, um passa-fora, um arre, um irra.
Os Castrados
Há muitos tipos de castrados.
Há os da casta de cantores
que se afinam na voz mais fina
aleijões de seus dissabores.Há os de vida feminina
de tarefas vis sem pudores
aios de haréns de concubinas
os assexuados sem rumores.São todos eunucos forçados
vítimas do mando de autores:
os sultões de sanha assassina
que gozam no estertor das dores.Castrados morais têm escrotos,
mas gozam com sexo dos outros.
Para viver cada dia
Sem erguer a nossa voz. Doemos paz e alegria
Aos que vivem junto a nós.
O único ditador que eu aceito é a voz silenciosa da minha consciência.
O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.
Abre a tua boca e dá voz ao teu coração, ele saberá conduzir-te no texto para que não magoes ninguém e muito menos a ti. Fala.
Presta o ouvido a todos, e a poucos a voz. Ouve as censuras dos demais; mas reserva tua própria opinião.
No Amor Começa-se Sempre a Zero
Fazer um registo de propriedade é chato e difícil mas fazer uma declaração de amor ainda é pior. Ninguém sabe como. Não há minuta. Não há sequer um despachante ao qual o premente assunto se possa entregar. As declarações de amor têm de ser feitas pelo próprio. A experiência não serve de nada — por muitas declarações que já se tenham feito, cada uma é completamente diferente das anteriores. No amor, aliás, a experiência só demonstra uma coisa: que não tem nada que estar a demonstrar coisíssima nenhuma. É verdade — começa-se sempre do zero. Cada vez que uma pessoa se apaixona, regressa à suprema inocência, inépcia e barbárie da puberdade. Sobem-nos as bainhas das calças nas pernas e quando damos por nós estamos de calções. A experiência não serve de nada na luta contra o fogo do amor. Imaginem-se duas pessoas apanhadas no meio de um incêndio, sem poderem fugir, e veja-se o sentido que faria uma delas virar-se para a outra e dizer: «Ouve lá, tu que tens experiência de queimaduras do primeiro grau…»
Pode ter-se sessenta anos. Mas no dia em que o peito sacode com as aurículas a brincar aos carrinhos-de-choque com os ventrículos,
Fragmentos de uma Elegia
(6)
Sei que me ouves na tempestade
e nas gotas que ficam nas folhas,
a brilhar. Sei nas ondas ouvir
teus mergulhos de sereia
e nos gritos dos golfinhos
entender teus recados. Percebo
no trinar dos pássaros outro
som – a tua voz. Assim, quando
em tempo de solidão e desamor,
em momentos de vazio e medo
mergulho em trevas de terror,
quase me apetece desistir, como tu
desististe. Mas procuro-te na vida
e na vida luto contra a morte.
Rodopio
Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas tôrres de marfim.Ascendem hélices, rastros…
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, farois,
Upam-se estátuas de herois,
Ondeiam lanças e mastros.Zebram-se armadas de côr,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor…Cristais retinem de mêdo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços…
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segrêdo.Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lirios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam…Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emmaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos de anseantes…(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas –
Um lenço, fitas, dedais…)Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Retrato
Pintar o rosto de Márcia
Com tal primor determino,
Que seja logo seu rosto
Pela pinta conhecido.
Anda doudo de prazer
Seu cabelo por tão lindo,
Pois mal lhe vai uma onda,
Quando outra já lhe tem vindo.
Sua testa com seus arcos
Do Turco Império castigo
Vencido tem Solimão,
Meias Luas tem vencido.
Dormidos seus olhos são,
Porém Planetas tão ricos
Nunca já foram sonhados,
Bem que sempre são dormidos.
A dormir creio se lançam
Por ter de mortais, e vivos
Tão boa fama cobrado,
Nome tão grande adquirido.
Entre seus raios se mostra
O grande nariz bornido,
Por final que entre seus raios
Prova o nariz de aquilino.
Nas taças de suas faces
Feitas do metal mais limpo,
Como certos Reverendos,
Mistura o branco co’tinto.
As perlas dos dentes alvos,
Os rubins dos beiços finos
Tem desdentado o marfim,
E a cor mais viva comido.
O passadiço da voz
Nem é neve, nem é vidro,
Nem mármore, nem marfim,
Nem cristal, mas passadiço.
O médico sai do quarto n.° 122. A enfermeira vem ao seu encontro. -Irmã Isolda- diz ele em voz baixa- avise o Dr. Eugênio. É um caso perdido, questão de horas, talvez de minutos. E ele sabe que vai morrer…
Males de Anto
A Ares n’uma aldeia
Quando cheguei, aqui, Santo Deus! como eu vinha!
Nem mesmo sei dizer que doença era a minha,
Porque eram todas, eu sei lá! desde o odio ao tedio.
Molestias d’alma para as quaes não ha remedio.
Nada compunha! Nada, nada. Que tormento!
Dir-se-ia accaso que perdera o meu talento:
No entanto, ás vezes, os meus nervos gastos, velhos,
Convulsionavam-nos relampagos vermelhos,
Que eram, bem o sentia, instantes de Camões!
Sei de cór e salteado as minhas afflicções:
Quiz partir, professar n’um convento de Italia,
Ir pelo Mundo, com os pés n’uma sandalia…
Comia terra, embebedava-me com luz!
Extasis, spasmos da Thereza de Jezus!
Contei n’aquelle dia um cento de desgraças.
Andava, á noite, só, bebia a noite ás taças.
O meu cavaco era o dos mortos, o das loizas.
Odiava os homens ainda mais, odiava as Coizas.
Nojo de tudo, horror! Trazia sempre luvas
(Na aldeia, sim!) para pegar n’um cacho d’uvas,
Ou n’uma flor. Por cauza d’essas mãos… Perdoae-me,
Aldeões! eu sei que vós sois puros. Desculpae-me.Mas, atravez da minha dor,