O vento não se mexe, nem respira ;
Deixam de namorar-se os passarinhos,
Para me ouvir chorar ao som da lira.
Passagens de Manuel Maria Barbosa du Bocage
100 resultadosÓ serena amizade!
Tu prestas mais que Amor: seus vãos favores
São caros, são custosos.
Amor em sendo ditoso
Costuma ser imprudente,
E nos gestos de quem ama
Logo o vê quem o não sente.
Amor a Amor Nos Convida
Com dura e branda cadeia,
Com facho activo e suave,
De seus mistérios co’a chave,
Amor entre nós volteia:
Já deprime, já gloreia,
Já dá morte, já dá vida;
E nesta incessante lida,
Que em si traz, que em si contém,
Com o mal, e com o bem,
Amor a amor nos convida.
O autor aos seus versos
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz e tirania:Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.
Aquele canta e ri; não se embaraça
Com essas coisas vãs que o mundo adora
Este (oh, cega ambição!) mil vezes chora
Porque não acha bem que o satisfaça.
Por entre a chuva de mortais peloiros
A nua fronte enriquecer de loiros
Eu procuro, eu desejo,
Para teus mimos desfrutar sem pejo,
Pois quem deste esplendor se não guarnece,
Não é digno de ti, não te merece.
Meus pensamentos se apuram,
Apuram-se os meus desejos
No ténue filtro celeste
De teus espontâneos beijos.
Magro, de Olhos azuis, Carão Moreno
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Preside O Neto Da Rainha Ginga
Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora, insana.
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga.Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o oragotango a corda à banza abana,
Com gesto e visagens de mandinga.Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode.Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode.
Eis aqui de Lereno as quartas-feiras.
Adamastor Cruel! De Teus Furores
Adamastor cruel! De teus furores
Quantas vezes me lembro horrorizado!
Ó monstro! Quantas vezes tens tragado
Do soberbo Oriente os domadores!Parece-me que entregue a vis traidores
Estou vendo Sepúlveda afamado,
Co’a esposa e co’os filhinhos abraçado,
Qual Mavorte com Vénus e os Amores.Parece-me que vejo o triste esposo,
Perdida a tenra prole e a bela dama,
Às garras dos leões correr furioso.Bem te vingaste em nós do afoito Gama!
Pelos nossos desastres és famoso.
Maldito Adamastor! Maldita fama!
Virtude os meios ama, odeia extremos;
Extremos são no mundo ou erro ou culpa.
Do mesmo que abrilhanta a Humanidade
Longe, longe, ó mortais, o injusto excesso!
Lá Quando Em Mim Perder A Humanidade
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou a vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu, sem ter dinheiro.”
Eu Deliro, Gertrúria, eu Desespero
Eu deliro, Gertrúria, eu desespero
No inferno de suspeitas e temores.
Eu da morte as angústias e os horrores
Por mil vezes sem morrer tolero.Pelo Céu, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em cândidos amores;
Longe o prazer de ilícitos favores!
Quero o teu coração, mais nada quero.Ah! não sejas também qual é comigo
A cega divindade, a Sorte dura.
A vária Deusa, que me nega abrigo!Tudo perdi: mas valha-me a ternura
Amor me valha, e pague-me contigo
Os roubos que me faz a má ventura.
Ó tu, consolador dos malfadados
Ó tu, consolador dos malfadados,
Ó tu, benigno dom da mão divina,
Das mágoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vós, sonhos d’amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visão de seus agrados:Filha das trevas, frouxa sonolência,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausência!Ah!, findou para mim tão leda sorte;
Agora é só feliz minha existência
No mudo estado, que arremeda a morte.
Rasga meus versos. Crê na eternidade.
O Céu, de Opacas Sombras Abafado
O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite fea,
Mugindo sobre as rochas, que saltea,
O mar, em crespos montes levantado;Desfeito em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta area;
O pássaro nocturno, que vozea
No agoireiro cipreste além pousado;Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme e saudade, a que ando afeito.Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.
Camões, Grande Camões, quão Semelhante
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante;Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.Modelo meu tu és, mas… oh, tristeza!…
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
Ingénuo, tem conta de ti!
No mundo há muitos enganos
(Eu o sei, porque os sofri);
Os bons padecem mil danos
Julgando os outros por si.
Das Terras A Pior Tu És, Ó Goa
Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, que Paris ou que Lisboa.A chusma de teus íncolas pregoa
Que excede o Grão Senhor na qualidade;
Tudo quer senhoria; o próprio frade
Alega, para tê-la, o jus da c’roa!De timbres prenhe estás; mas oiro e prata
Em cruzes, com que dantes te benzias,
Foge a teus infanções de bolsa chata.Oh que feliz e esplêndida serias,
Se algum fusco Merlim, que faz bagata,
Te alborcasse a pardaus as senhorias!