Passagens de Manuel Maria Barbosa du Bocage

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Adamastor Cruel! De Teus Furores

Adamastor cruel! De teus furores
Quantas vezes me lembro horrorizado!
Ă“ monstro! Quantas vezes tens tragado
Do soberbo Oriente os domadores!

Parece-me que entregue a vis traidores
Estou vendo SepĂşlveda afamado,
Co’a esposa e co’os filhinhos abraçado,
Qual Mavorte com Vénus e os Amores.

Parece-me que vejo o triste esposo,
Perdida a tenra prole e a bela dama,
Às garras dos leões correr furioso.

Bem te vingaste em nĂłs do afoito Gama!
Pelos nossos desastres és famoso.
Maldito Adamastor! Maldita fama!

Virtude os meios ama, odeia extremos;
Extremos sĂŁo no mundo ou erro ou culpa.
Do mesmo que abrilhanta a Humanidade
Longe, longe, Ăł mortais, o injusto excesso!

Lá Quando Em Mim Perder A Humanidade

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que nĂŁo fazem falta,
Verbi-gratia – o teĂłlogo, o peralta,
Algum duque, ou marquĂŞs, ou conde, ou frade:

NĂŁo quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou a vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu, sem ter dinheiro.”

Eu Deliro, GertrĂşria, eu Desespero

Eu deliro, GertrĂşria, eu desespero
No inferno de suspeitas e temores.
Eu da morte as angĂşstias e os horrores
Por mil vezes sem morrer tolero.

Pelo Céu, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em cândidos amores;
Longe o prazer de ilĂ­citos favores!
Quero o teu coração, mais nada quero.

Ah! não sejas também qual é comigo
A cega divindade, a Sorte dura.
A vária Deusa, que me nega abrigo!

Tudo perdi: mas valha-me a ternura
Amor me valha, e pague-me contigo
Os roubos que me faz a má ventura.

Ă“ tu, consolador dos malfadados

Ă“ tu, consolador dos malfadados,
Ă“ tu, benigno dom da mĂŁo divina,
Das mágoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:

Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vĂłs, sonhos d’amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visĂŁo de seus agrados:

Filha das trevas, frouxa sonolĂŞncia,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausĂŞncia!

Ah!, findou para mim tĂŁo leda sorte;
Agora Ă© sĂł feliz minha existĂŞncia
No mudo estado, que arremeda a morte.

O Céu, de Opacas Sombras Abafado

O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite fea,
Mugindo sobre as rochas, que saltea,
O mar, em crespos montes levantado;

Desfeito em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta area;
O pássaro nocturno, que vozea
No agoireiro cipreste além pousado;

Formam quadro terrĂ­vel, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato Ă  fereza
Do ciĂşme e saudade, a que ando afeito.

Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.

Camões, Grande Camões, quão Semelhante

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrĂ­lego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penĂşria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vĂŁos, que em vĂŁo desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

LudĂ­brio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que sĂł terei paz na sepultura.

Modelo meu tu Ă©s, mas… oh, tristeza!…
Se te imito nos transes da Ventura,
NĂŁo te imito nos dons da Natureza.

Das Terras A Pior Tu És, Ó Goa

Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, que Paris ou que Lisboa.

A chusma de teus Ă­ncolas pregoa
Que excede o GrĂŁo Senhor na qualidade;
Tudo quer senhoria; o prĂłprio frade
Alega, para tĂŞ-la, o jus da c’roa!

De timbres prenhe estás; mas oiro e prata
Em cruzes, com que dantes te benzias,
Foge a teus infanções de bolsa chata.

Oh que feliz e esplĂŞndida serias,
Se algum fusco Merlim, que faz bagata,
Te alborcasse a pardaus as senhorias!

Sonho

De suspirar em vão já fatigado,
Dando trégua a meus males eu dormia;
Eis que junto de mim sonhei que via
Da Morte o gesto lĂ­vido e mirrado:

Curva fouce no punho descarnado
Sustentava a cruel, e me dizia:
“Eu venho terminar tua agonia;
Morre, nĂŁo penes mais, Ăł desgraçado!”

Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada,
Que armado de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:

“Emprega noutro objecto teus rigores;
Que esta vida infeliz está guardada
Para vĂ­tima sĂł de meus furores.”

Aos Mesmos

De insĂ­pida sessĂŁo no inĂştil dia
Juntou-se do Parnaso a galegage;
Em frase hirsuta, em gĂłtica linguage,
Belmiro um ditirambo principia.

Taful que o portuguĂŞs nĂŁo lhe entendia,
Nem ao resto da cĂ´mica salsage,
Saca o soneto que lhe fez Bocage,
E conheceu-se nele a Academia.

Dos sĂłcios o pior silvou qual cobra,
Desatou-se em trovões, desfez-se em raios,
Dando ao triste Bocage o que lhe sobra.

Fez na calúnia vil cruéis ensaios,
E jaz com grandes créditos a obra
Entre mĂŁos de marujos e lacaios.

Proposição das rimas do poeta

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, Ăł leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e nĂŁo louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparĂŞncia
Indique festival contentamento,

Crede, Ăł mortais, que foram com violĂŞncia
Escritos pela mĂŁo do Fingimento,
Cantados pela voz da DependĂŞncia.

Invocação à Noite

Ă“ deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importantes astros vigilantes:

Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem d’amor os sĂ´fregos instantes:

Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado Sol teu nĂ­veo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!

Tarda ao menos o carro Ă  Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.

Meus Olhos, Atentai no Meu Jazigo

Meus olhos, atentai no meu jazigo,
Que o momento da morte está chegado;
Lá soa o corvo, intérprete do fado;
Bem o entendo, bem sei, fala comigo:

Triunfa, Amor, gloria-te, inimigo;
E tu, que vĂŞs com dor meu duro estado,
Volve à terra o cadáver macerado,
O despojo mortal do triste amigo:

Na campa, que o cobrir, piedoso Albano,
Ministra aos corações, que Amor flagela,
Terror, piedade, aviso, e desengano:

Abre em meu nome este epitáfio nela:
“Eu fui, ternos mortais, o terno Elmano;
Morri de ingratidões, matou-me Isabela.”

A frouxidĂŁo no amor Ă© uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
PaixĂŁo requer paixĂŁo; fervor e extremo
Com extremo e fervor se recompensa.

Liberdade, Onde estás? Quem Te Demora?

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nĂłs nĂŁo caia?
Porque (triste de mim!) porque nĂŁo raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!, venha . . . Oh!, venha, e trĂŞmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
MĂŁe do gĂŞnio e prazer, Ăł Liberdade!

Um tĂ­mido pudor activos fogos
Contrariava em vĂŁo, em vĂŁo retinha
Ignotos medos, sĂ´fregos desejos.
Suspensa e curiosa, eu esperava
Gostosa cena, em que prolixas noites
Pensando o que seria, despendera.