Textos sobre Escritores

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Textos de escritores escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Ilusão da Consistência da Obra do Escritor

O homem não é permanentemente igual a si mesmo. A velha concepção dos carácteres rectilíneos e das mentalidades cristalizadas em sistemas imutáveis abriu falência. Tudo muda, no espaço e no tempo. Para um organismo vivo, existir – mesmo no ponto de vista somático – é transformar-se. Quando começamos cedo e envelhecemos na actividade das letras, não há um nós apenas um escritor; há, ou houve, escritores sucessivos, múltiplos e diversos, representando estados de evolução da mesma mentalidade incessantemente renovada. Ao chegar a altura da vida em que a estabilização se opera, olhamos para trás, e muitas das nossas próprias obras parecem-nos escritas por um estranho, tão longe se encontram já, não apenas dos nossos processos literários, mas do nosso espírito, das nossas tendências, da nossa orientação, dos nossos pontos de vista éticos e estéticos.
Nesse exame retrospectivo, por vezes doloroso, se de algumas coisas temos de louvar-nos – obras a que a nossa mocidade comunicou a chama viva do entusiasmo e da paixão -, de outras somos forçados a reconhecer a pobreza da concepção, os vícios da linguagem, as carências da técnica, e tantas vezes (poenitet me!) as audácias, as incoerências, as injustiças, as demasias, a licença de certas pinturas de costumes e o erro de certas atitudes morais.

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O Homem de Génio (I)

Em arte tudo é lícito, desde que seja superior. Não é permitido ao homem vulgar ser antipatriota, porque não tem mentalidade acima da espécie, e a não pode ter pois acima da espécie imediata, que é a nação a que pertence. Ao génio é permitido. Sucede, por ironia, que os grandes génios são em geral conformes com os sentimentos normais: Shakespeare era intensamente, até excessivamente, patriota. Um génio antipatriota é um fenómeno, não direi vulgar, mas aceitável. Um operário antipatriota é simplesmente uma besta.
O homem da espécie não pode ter opiniões, porque a opinião é do indivíduo, e desde que um homem pertença organicamente a uma família, a uma classe, a qualquer coisa que constitua ambiente imediato e vivo, deixa de ser um indivíduo para ser uma célula qualquer. Só a nação, por ser um ambiente abstracto, visto que tem parte no passado e parte no futuro, não estorva a alma individual.
O problema da proteção aos artistas, ou qualquer problema parecido, não existe em relação ao homem de génio, cuja vida mental é uma coisa à parte e que passa, em geral, incompreendido na sua época, ou, pelo menos, incompreendido naquilo mesmo que é nele génio.

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O Pressuposto Indispensável para se Ser um Grande-Escritor

O pressuposto indispensável para se ser um grande-escritor é, então, o de escrever livros e peças de teatro que sirvam para todos os níveis, do mais alto ao mais baixo. Antes de produzir algum bom efeito, é preciso primeiro produzir efeito: este princípio é a base de toda a existência como grande-escritor. É um princípio miraculoso, eficaz contra todas as tentações da solidão, por excelência o princípio goethiano do sucesso: se nos movermos apenas num mundo que nos é propício, tudo o resto virá por si. Pois quando um escritor começa a ter sucesso dá-se logo uma transformação significativa na sua vida. O seu editor pára de se lamentar e de dizer que um comerciante que se torna editor se parece com um idealista trágico, porque faria muito mais dinheiro negociando com tecidos ou papel virgem. A crítica descobre nele um objecto digno da sua actividade, porque os críticos muitas vezes até nem são más pessoas, mas, dadas as circunstâncias epocais pouco propícias, ex-poetas que precisam de um apoio do coração para poderem pôr cá fora os seus sentimentos;são poetas do amor ou da guerra, consoante o capital interior que têm de aplicar com proveito, e por isso é perfeitamente compreensível que escolham o livro de um grande-escritor e não o de um comum escritor.

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Esta Prosa Travada

Põe-se a gente a ler estes Gides, estes Munthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude. Sempre a mesma sensação de que, depois daquilo, não vale a pena escrever uma palavra, de mais a mais nesta língua de que o diabo ainda se serve para falar à avó… Mas depois vem a revolta. Esta impotente revolta de todo o verdadeiro escritor português que começou por nascer atrás duma fraga e acaba por gastar a vida em Paio Pires, amanuense de secretaria. Metessem no braço dum Gide uma manga de alpaca, e eu queria ver… Então um homem nasce em Paris ou numa terra lavada da Suécia, tanto faz, mestres logo à beira do berço, todas as civilizações na biblioteca do pai, uma vida inteira pelo mundo além, e aqueles neurónios, e aqueles sentidos não hão-de reagir?! O mais bronco ser humano, quando fala com um Wilde, ouviu pelo menos falar o autor do De Profundis. Evidentemente é preciso mais alguma coisa do que ir à China e ter certa experiência para escrever A Condição Humana. Mas, sem um homem andar de avião, como há-de um homem ganhar perspectivas de pássaro e falar de poços de ar?!
…E a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar esta prosa travada,

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Os Caçadores de Simulacros

O artista, o poeta, o escritor, os que perguntam: todos são caçadores de simulacros, incansáveis calculadores de improbabilidades. Pombas ou abutres, frágeis canários ou escondidos melros, raspam, rasgam, rompem, sempre roendo as suas próprias garras. O invisível que há neles então emerge.

A Moral entre a Verdade e a Subjectividade

Um homem que busca a verdade torna-se sábio; um homem que pretende dar rédea solta à sua subjectividade torna-se, talvez, escritor; e que fará um homem que busca algo que se situa entre essas duas hipóteses? Mas tais exemplos, os de algo que está «entre», encontramo-los em qualquer sentença moral, a começar pela mais simples e mais conhecida: «não matarás». Vê-se imediatamente que não é nem uma verdade nem uma experiência subjectiva. Sabe-se que, em muitos aspectos, nos conformamos estritamente a ela, mas que, por outro lado, se aceitam numerosas excepções, ainda que perfeitamente delimitadas; no entanto, num grande número de casos de um terceiro tipo – por exemplo na imaginação, na esfera dos desejos, nas peças de teatro ou no prazer que experimentamos ao ler as notícias dos jornais – deixamo-nos oscilar descontroladamente entre a aversão e a atracção.
Por vezes aquilo a que não podemos chamar nem verdade nem experiência pessoal recebe o nome de imperativo. Tais imperativos foram associados aos dogmas da religião ou da lei, concedendo-lhes assim o carácter de uma verdade derivada, mas os romancistas narram as excepções, a começar pelo sacrifício de Abraão e terminando na bela mulher jovem que matou o amante a tiro,

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O Romancista e o Escritor

Releio o curto ensaio de Sartre O Que é Escrever?. Nem uma vez ele utiliza as palavras romance, romancista. Fala apenas do escritor da prosa. Distinção justa. O escritor tem ideias originais e uma voz inimitável. Pode servir-se de qualquer forma (romance incluído) e tudo o que escreve, já que marcado pelo seu pensamento, levado pela sua voz, faz parte da sua obra. Rouseau, Goethe, ChateauBriand, Gide, Malraux, Camus, Montherland.
O romancista não liga muito às suas ideias. É um descobridor que, tacteando, se esforça por desvendar um aspecto desconhecido da existência. Não está fascinado pela sua voz mas por uma forma que persegue, e só as formas que respondem às exigências do seu sonho fazem parte da sua obra. Fielding, Sterne, Flaubert, Proust, Faulkner, Céline, Calvino.
O escritor inscreve-se na carta espiritual do seu tempo, da sua nação, na da história das ideias. O único contexto em que se pode apreender o valor de um romance é o da história do romance europeu. O romancista não tem contas a prestar a ninguém, excepto a Cervantes.

Só Há Duas maneiras de se Ter Razão

Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor…

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra.

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A Minha Lista dos Grandes Autores

Uma revista espanhola teve a ideia de pedir a uns quantos escritores que elaborassem a sua árvore genealógica literária, isto é, a que outros autores consideravam eles como avoengos seus, directos ou indirectos, excluindo-se do inventado parentesco, obviamente, qualquer presunção de relações ou equivalências de mérito que a realidade, pelo menos no meu caso, logo se encarregaria de desmentir. Também se pedia que, em brevíssimas palavras, fosse dada a justificação dessa espécie de adopção ao contrário, em que era o «descendente» a escolher o «ascendente». A cada escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão-de vir a aparecer os retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respectiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no «Ano da Morte de Ricardo Reis», todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que não é preciso ser-se génio para escrever um livro genial,

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A Escrita Exige Sempre a Poesia

Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.

Muitas vezes jovens me perguntam como se redige uma peça literária. A pergunta não deixa de ter sentido. Mas o que deveria ser questionado era como se mantém uma relação com o mundo que passe pela escrita literária. Como se sente para que os outros se representem em nós por via de uma história? Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam.

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A Eterna Criação da Literatura

A literatura é um acontecimento completamente à parte. É um acontecimento que, de cada vez, recomeça de alto a baixo. É um acontecimento sem hábitos. No caso de um bom marceneiro, ou mesmo de um bom buscador de ouro, trata-se de refazer o que se fazia antes dele e – se for possível – contribuir com o seu pequeno aperfeiçoamento para a forma da mesa ou para o oco da bateia. Mas um jovem escritor não deve absolutamente ameliorar Proust, ou aperfeiçoar Claudel, completar Gide ou fazer um pequeno retoque a Valéry. Não, de modo algum. Cabe-lhe escrever como se nem Gide, nem Proust tivessem existido nunca.

O Cerne da Escrita e da Leitura

Não se é escritor por se ter preferido dizer certas coisas, mas por se ter preferido dizê-las duma certa maneira. E o estilo faz, evidentemente, o valor da prosa. Mas deve passar despercebido. Uma vez que as palavras são transparentes e que o olhar as atravessa, seria absurdo meter entre elas vidros despolidos. Aqui, a beleza é apenas uma força doce e insensível.
Num quadro, brilha antes de mais nada; num livro, esconde-se, age por persuasão como o encanto duma voz ou dum rosto, não obriga, faz curvar sem que se dê por isso e pensa-se ceder aos argumentos quando afinal se é solicitado por um encanto imperceptível. A cerimónia da missa não é a fé, ela dispõe a isso; a harmonia das palavras, a sua beleza, o equilíbrio das frases, dispõem as paixões do leitor sem que ele dê por isso, ordenam-nas como a missa, como a música, como uma dança; se acaba por as considerar em si mesmas, perde o sentido, apenas restam oscilações aborrecidas.

A Dúvida, a Solidão, logo… a Escrita

Na vida, chega um momento – e penso que ele é fatal – ao qual não é possível escapar, em que tudo é posto em causa: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Tudo menos a criança. A criança nunca é posta em dúvida. E essa dúvida cresce à sua volta. Essa dúvida, está só, é a da solidão. Nasce dela, da solidão. Podemos já nomear a palavra. Creio que há muita gente que não poderia suportar o que aqui digo, que fugiria. Talvez seja por essa razão que nem todos os homens são escritores. Sim. Essa é a diferença. Essa é a verdade. Mais nada. A dúvida é escrever. É, portanto, também, o escritor. E com o escritor todo o mundo escreve. É algo que sempre se soube.
Creio também que sem esta dúvida primeira do gesto em direcção à escrita não existe solidão. Nunca ninguém escreveu a duas vozes. Foi possível cantar a duas vozes, ou fazer música também, e jogar ténis, mas escrever, não. Nunca.

A Variedade é a Única Desculpa da Abundância

A variedade é a única desculpa da abundância. Ninguém deveria deixar vinte livros diferentes, a menos que seja capaz de escrever como vinte homens diferentes. As obras de Victor Hugo enchem cinquenta grossos volumes, mas cada volume, cada página quase, contém todo o Victor Hugo. As outras páginas somam-se como páginas, não como génio. Nele não existia produtividade, mas prolixidade. Desperdiçou o seu tempo como génio, por pouco que o tivesse desperdiçado como escritor. A opinião de Goethe a seu respeito continua a ser suprema, apesar de ter sido precocmente emitida, e uma grande lição para todos os artistas: «Deveria escrever menos e trabalhar mais», disse ele. Este parecer, na sua distinção entre o trabalho a sério, que não se espraia, e o trabalho fictício, que ocupa espaço (pois as páginas nada mais são do que espaço), é uma das grandes opiniões críticas do mundo.
Se conseguir escrever como vinte homens diferentes, é vinte homens diferentes, seja lá como for, e os seus vinte livros têm justificação.

O Talento na Juventude e na Velhice

Nada menos exacto do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes recíprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso não quer dizer que se seja necessáriamente intolerante e retrógado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e contribuiram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a mocidade literária, negando embora sistemáticamente o passado, é nele que se inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.
(…) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços;

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A Realidade em Coro

A realidade sempre me atraiu como um íman, torturando-me e hipnotizando-me, e eu queria capturá-la no papel. Comecei então a apropriar-me imediatamente deste género de vozes humanas e confissões, de evidências de testemunhas e documentos. Isto é como eu vejo e ouço o mundo – como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes quotidianos. Desta forma, todo o meu potencial mental e emocional é realizado em pleno. Desta forma eu posso ser, simultaneamente, uma escritora, uma jornalista, uma socióloga, uma psicóloga e uma pregadora.

Aprender a Ler

Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra «m» se chamasse «éme» e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse «éme» e sim «ma». Era-me impossível ler assim. Por fim, quando cheguei ao Montessori, a professora não me ensinou os nomes mas sim os sons das consoantes. Assim pude ler o primeiro livro que encontrei numa arca poeirenta da arrecadação da casa. Estava descosido e incompleto, mas absorveu-me de uma forma tão intensa que o namorado da Sara, ao passar, deixou cair uma premonição aterradora: «Caramba!, este menino vai ser escritor».

Dito por ele, que vivia de escrever, causou-me uma grande impressão. Passaram vários anos antes de saber que o livro era «As Mil e Uma Noites». O conto de que mais gostei – um dos mais curtos e o mais simples que li — continuou a parecer-me o melhor para o resto da minha vida, embora agora não esteja seguro de que fosse lá que o li nem ninguém me tenha podido esclarecer. O conto é este: um pescador prometeu a uma vizinha oferecer-lhe o primeiro peixe que pescasse se ela lhe emprestasse um chumbo para a sua rede e,

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A Casa do Escritor

O escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. Comporta-se nos seus pensamentos como faz com os seus papéis, livros, lápis, tapetes, que leva de um quarto para o outro, produzindo uma certa desrodem. Para ele, tornam-se peças de mobiliário em que se acomoda, com gosto ou desprazer. Acaricia-os com delicadeza, serve-se deles, revira-os, muda-os de sítio, desfá-los. Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação. E aí produz, como outrora a família, desperdícios e lixo.

Mas já não dispõe de desvão e é-lhe muitíssimo difícil livrar-se da escória. Por isso, ao tirá-la da sua frente, corre o risco de acabar por encher com ela as suas páginas. A exigência de resistir à auto-compaixão inclui a exigência técnica de defrontar com extrema atenção o relaxamento da tensão intelectual e de eliminar tudo quanto tenda a fixar-se como uma crosta no trabalho, tudo o que decorre no vazio, o que talvez suscitasse, num estádio anterior, como palavriado, a calorosa atmosfera em que emerge, mas agora permanece bafiento e insípido. Por fim, já nem sequer é permitido ao escritor habitar nos seus escritos.

A Juventude e a Literatura

Os jovens são, geralmente, melhores juízes das obras destinadas a estimular sentimentos e imagens do que os homens maduros ou velhos. Mas por outro lado, vê-se que os jovens que não são educados para a leitura procuram nela um prazer mais do que humano, infinito, e de características absurdas; e não encontrando isso nela, desprezam os escritores; o que por vezes acontece também noutras idades, por razões idênticas, com os iliteratos.

E aqueles jovens que se dedicam às letras facilmente preferem, não só quando escrevem mas também quando avaliam as obras dos outros, o excessivo ao moderado, a sumptuosidade ou a afectação das expressões e dos ornamentos ao simples e ao natural, e as belezas ilusórias às verdadeiras, em parte devido à sua pouca experiência e em parte ao arrebatamento próprio da idade. Donde se deduz que os jovens, que são sem dúvida, entre todos os homens, aqueles que estão mais dispostos a louvar o que lhes parece bom, por serem mais sinceros e ingénuos, raramente são capazes de apreciar a hábil e perfeita boa qualidade das obras literárias. Com o avançar dos anos, aumenta a capacidade que se adquire com o treino e diminui a natural. Contudo,

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A Função do Escritor

Que o mundo «está infestado com a escória do género humano» é perfeitamente verdade. A natureza humana é imperfeita. Mas pensar que a tarefa da literatura é separar o trigo do joio é rejeitar a própria literatura. A literatura artística é assim chamada porque descreve a vida como realmente é. O seu objectivo é a verdade – incondicional e honestamente. O escritor não é um confeiteiro, um negociante de cosméticos, alguém que entretém; é um homem constrangido pela realização do seu dever e a sua consciência. Para um químico, nada na terra é puro. Um escritor tem de ser tão objectivo como um químico.
Parece-me que o escritor não deveria tentar resolver questões como a existência de Deus, pessimismo, etc. A sua função é descrever aqueles que falam, ou pensam, acerca de Deus e do pessimismo, como e em que circunstâncias. O artista não deveria ser juiz dos seus personagens e das suas conversas, mas apenas um observador imparcial.
Têm razão em exigir que um artista deva ter uma atitude inteligente em relação ao seu trabalho, mas confundem duas coisas: resolver um problema e enunciar correctamente um problema. Para o artista, só a segunda cláusula é obrigatória.
Acusam-me de ser objectivo,

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