Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.
Passagens de Fernando Pessoa
1382 resultadosNinguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.
Uma Alma Amante e Terna
Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha – solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no mau carácter um elemento da natureza inteiramente oposto, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.
Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! Prouvera antes ao Destino que os deuses o tivessem!
O Maestro Sacode a Batuta
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe …Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo …Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal…
Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio.
Há apenas dois tipos de estado de alma constante em que a vida vale a pena ser vivida – com a nobre alegria de ter uma religião, ou com a nobre tristeza de se ter perdido uma.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Dizem que Finjo ou Minto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!
Arte Com ou Sem Nacionalidade
O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?
— Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa — entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro — se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações — a Grécia passada e Portugal futuro — receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.
Quando escrevo, visito-me solenemente.
Mesmo a circunstância de eu ir publicar um livro vem alterar a minha vida. Perco uma coisa – o ser inédito.
Chove. Há Silêncio
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece…Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente…
Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
Vaga, no Azul Amplo Solta
Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
Sorriso Audível das Folhas
Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?
A Imperfeição dos Nossos Sentidos
Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência; nem as ideias abstractas de nada nos serviriam. A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto.
Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.
Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena.
Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente, por isso pouco sentiam. De aí a sua perfeita execução da obra de arte.
Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade. A sensibilidade é pessoal e intransmissível. Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.