Passagens de Fernando Pinto do Amaral

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Frases, pensamentos e outras passagens de Fernando Pinto do Amaral para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

SĂ©culo XXI

Falam de tudo como se a razĂŁo
lhes ensinasse desesperadamente
a mentir, a lançar
sem remorso nem asco um novo isco
à espera que alguém morda
e acredite nessa liturgia
cujos deuses são fáceis de adorar
e obedecem Ă s leis do mercado.

Falam desse ludĂ­brio a que chamam
o futuro
como se ele existisse
e as suas palavras ecoam
em flatulentas frases
sempre a favor do vento que as agita
ao ritmo dos sorrisos ou das entrevistas
em que tudo se vende
por um preço acessível: emoções
& sexo & fama & outros prometidos
paraísos terrestres em horário nobre
– matĂ©ria reciclável
alimentando o altar do esquecimento.

O poder nĂŁo existe, como sabes
demasiado bem – apenas uma
inĂştil recidiva biolĂłgica
de hormonas apressadas que procuram
ser fiéis aos comércio
dos sonhos sempre iguais, reproduzindo
sedutoras metástases do nada
nos cĂłdigos de barras ou nos cromossomas
de quem já pouco espera dos seus genes.

Sombras

A meio desta vida continua a ser
difĂ­cil, tĂŁo difĂ­cil
atravessar o medo, olhar de frente
a cegueira dos rostos debitando
palavras destinadas a morrer
no lume impaciente de outras bocas
anunciando o mel ou o vinho ou
o fel.

Calmamente sentado num sofá,
começas a entender, de vez em quando,
os condenados a prisão perpétua
entre as quatro paredes do espĂ­rito
e um esquife negro onde vĂŁo desfilando
imagens, sĂł imagens
de canal em canal, sintonizadas
com toda a angĂşstia e estupidez do mundo.

As pessoas – tu sabes – as pessoas sĂŁo feitas
de vento
e deixam-se arrastar pela mais bela
respiração das sombras,
pela morte que repete os mesmos gestos
quando o crepĂşsculo fica a sĂłs connosco
e a noite se redime com uma estrela
a prometer salvar-nos.

A meio desta vida os versos abrem
paisagens virtuais onde se perdem
as intenções que alguma vez tivemos,
o recorte obscuro de perfis
desenhados a fogo há muitos anos
numa alma forrada de espelhos
mas sempre tĂŁo vazia,

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Relâmpago

Rompe-se a escuridĂŁo quando ao olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, sĂł por si, fazer brilhar

a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar

um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase nĂŁo reagem
salvo se nesse instante o rosto for

transfigurado pela fantasia.
E Ă s vezes Ă© sĂł isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.