Passagens de Isabel Gouveia

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A Vida que Vivemos

A vida que vivemos encerrou-se
na concha de coral duma lembrança.
Por muros altaneiros confmou-se,
volteia dentro deles em suave dança.

Liberta de sonhar, por tal fronteira,
condenada a um eterno redopio,
pusilânime e triste timoneira
balançando ao sabor do teu navio,

ó estranha expressão de movimento,
tão escrava de ti que não tens fim,
ó reduto fechado dum tormento

cujas mãos me maltratam só a mim,
deixa as aves lançarem no teu meio
essa sombra das asas por que anseio!

Mentir-me não Adianta

Vieram hoje dizer-me
mentiras a meu respeito,
mas nunca podem esconder-me
o que lhes vai lá no peito.

Só quero hoje a verdade,
mais nua que ave perdida…
Os sinos tangem-me a idade
na alta torre da vida.

Mentiras, fora daqui!
Ide acampar noutra parte!
Existe um espelho que ri,
ao desnudar-vos com arte.

Palavras, gestos, partissem,
morressem antes do dia!
Humildes, se diluíssem
na madrugada bem fria.

Deixai-me as cordas do sino
de me sentir como sou.
Puxando-as, oiço o menino
que nas entranhas ficou.

Idade! Já tenho tanta!
Nasci num dia riscado
do calendário do Tempo.
O meu destino é dobrado,
mentir-me não adianta!

A Teia da Esperança

A teia tecida
nas noites de esperança,
rasgada e ferida,
segue a nossa andança.

E juntos, mãos dadas,
olhamos pra ela,
vontades paradas,
quais barcos sem vela.

Amigo, que o braço
cansado de tédio
ergamos no espaço!
É esse o remédio.

Depois de cerzidas,
não ficam marcadas
profundas feridas
em teias rasgadas!

Culpabilidade

O que é o perdão?

Vivi na esperança
de o ter entre os dedos.
Quem diz que o alcança
só vive de enredos…

Fiz mal? Mas a quem?
Que venham contar-me
as mágoas geradas
por meu vil desdém
e as feridas mostrar-me
na carne rasgadas.

Fiz mal? Mas a quem?
Fui pedra lançada
no vosso caminho?
Barrei-vos a estrada
com traves de pinho?

Só sei que

há vozes gritando
a culpa que sinto
pesar-me na alma,
há ecos cavando
a dor que pressinto
em noites de calma…

Só sei que
suspensos enredos
da minha agonia,
urdida ao serão
em grande segredo,
tornaram vazia
a minha intuição.

Fiz mal? Sim ou não?
Onde e quando?
Dizei-mo, dizei-mo!

Eu sou como a rocha
virada prò norte,
que acolhe a rajada
em concha bem forte
e a atira prò nada…

Fiz mal? Sim ou não?
Até os duendes,
escondidos e aduncos,
me negam razão.

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O Vencedor Vencido

Não é fácil amar o que venceu,
o que leva alguns passos de avançada,
que o amor só se oferece ao que perdeu,
muito embora com culpa declarada.
Todavia, o que vence multiplica
sobre si as angústias de perder:
interroga, analisa e só complica
aquilo que não pode perceber;
e quando, em esgotamento prematuro,
ele aceita uma calma provisória,
vêm os homens que o lançam contra o muro
e lhe atiram ao rosto essa vitória.

Falsos Amigos

Tenho amigos que pensam confundir-me
igualando a loucura à minha ânsia.
Pobrezitos!, que tentam destruir-me
havendo de permeio esta distância.

Eu tenho pena de não ser um deles,
ao menos uma vez, por uns momentos.
Gostava de morrer um dia neles,
ressuscitando nos seus pensamentos.

Pintar-lhes-ei um dia o rosto a sério,
com talento nascido de neurose
que faça vê-los nus no baptistério
onde lavam a alma da esclerose?

Toda a gente rirá desse retrato,
e haverá certamente prò comprar
um novo-rico que lhe admire o fato
e o pendure na sala de jantar.

Hei-de pôr-Ihes uns olhos que reluzam,
mas vazios nas órbitas repletas,
profanação nos dedos que se cruzam,
num indigno repouso de poetas.

Ah, são eles que procuram destruir-me,
criticando-me as faces controversas!,
mas apenas conseguem reunir-me
nas mil forças que tenho bem dispersas.

Diário duma Mulher

Meu rosto já tem vincos de cansaço.
Murcharam como as rosas minhas faces.
Já não posso estreitar-te num abraço,
sem temer, meu Amor, que não me abraces!

O luar nos meus olhos fez-se baço.
Meus lábios, se algum dia tu beijasses!…
Meu passado, porém, morreu no espaço,
qual nuvem que em chuvisco transformasses!

O futuro não tem de que viver.
O amor — raízes mortas que não nascem —,
os sonhos, estão como se embarcassem

num cruzeiro de calma, sem saber
que o é… Mas essa calma hoje é sinónimo
de um sentimento misterioso, anónimo…