InocĂȘncia
Vou aqui como um anjo, e carregado
De crimes!
Com asas de poeta voa-se no cĂ©u…
De tudo me redimes,
PenitĂȘncia
De ser artista!
Nada sei,
Nada valho,
Nada faço,
E abre-se em mim a força deste abraço
Que abarca o mundo!Tudo amo, admiro e compreendo.
Sou como um sol fecundo
Que adoça e doira, tendo
Calor apenas.
Puro,
Divino
E humano como os outros meus irmĂŁos,
Caminho nesta ingénua confiança
De criança
Que faz milagres a bater as mĂŁos.
Poemas sobre CĂ©u de Miguel Torga
8 resultadosOrfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fĂșria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.Outros, felizes, sejam os rouxinĂłis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que hĂĄ gritos como hĂĄ nortadas,
ViolĂȘncias famintas de ternura.Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legĂtima defesa.
Canto, sem perguntar Ă Musa
Se o canto Ă© de terror ou de beleza.
Liberdade
â Liberdade, que estais no cĂ©u…
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.â Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silĂȘncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pĂŁo da minha fome.
â Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Intimidade
Meu coração tem quantos versos quer;
Ă sĂł pulsĂĄ-los com medida e rumo.
à só erguer-se a pino a um céu qualquer,
E desse alado azul cair a prumo.Logo se desvanece o negro encanto
Que os tinha ocultos no condĂŁo da bruma;
Logo o seu corpo esguio rasga o manto,
E mostra a humanidade que ressuma.Mas quanto ele sangra para os orvalhar
De ternura, de sonho e de ilusĂŁo,
SĂŁo outros versos. . . para segredar
A quem Ă© seu irmĂŁo.
Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vĂŁo ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que sĂŁo trĂȘs,
E dos pecados mortais,
Que sĂŁo sete,
Quando a terra nĂŁo repete
Que sĂŁo mais.Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lĂșcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.Me confesso de ser charco
E luar de charco, Ă mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raĂzes no chĂŁo
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caĂdo
Do tal CĂ©u que Deus governa;
De ser um monstro saĂdo
Do buraco mais fundo da caverna.
Ode
Eis-me nu e singelo!
Areia branca e o meu corpo em cima.
Um puro homem, natural e belo,
De carne que nĂŁo peca e que nĂŁo rima.A linha do horizonte Ă© um nĂvel quieto;
As velas, de cansaço, adormeceram;
E penas brancas, que eram luto preto,
Perderam-se no azul de onde vieram.Sol e frescura em toda a grande praia
Onde nĂŁo pode haver agricultura;
Esterilidade limpa, que nĂŁo caia
De pĂŁo e vinho a cĂłsmica fartura.Dançam toninhas lĂșdicas no cĂ©u
Que visitam ligeiras e felizes;
Uma força sonùmbula as ergueu,
Mas seguras Ă seiva das raĂzes.Nem paz, nem guerra, nem desarmonia;
O sexo alegre, mas a repousar;
Um pleno, largo e caudaloso dia,
Sem horas e minutos a passar.Vem até mim, onda que trazes vida!
Soro da redenção!
Vem como o sangue doutra mĂŁe pedida
Na hora de dar mundo ao coração!
Viagem
Ă o vento que me leva.
O vento lusitano.
Ă este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
Ă esta fĂșria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar…
Vendaval
Meu coração quebrou.
Era um cedro perfeito;
Mas o vento da vida levantou,
E aquele prumo do céu caiu direito.Nos bons tempos felizes
Em que ele batia, erguido,
Desde a rama Ă s raĂzes
Era seiva e sentido.Agora jaz no chĂŁo.
Palpita ainda, e tem
Vida de coração…
Mas não ama ninguém.