Sonetos sobre Ar de Florbela Espanca

11 resultados
Sonetos de ar de Florbela Espanca. Leia este e outros sonetos de Florbela Espanca em Poetris.

CrepĂșsculo

Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lĂ­rios roxos e dolentes…

E os lĂ­rios fecham… Meu Amor, nĂŁo sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mĂŁos sĂŁo maceradas
Como vagas saudades de doentes…

O SilĂȘncio abre as mĂŁos… entorna rosas…
Andam no ar carĂ­cias vaporosas
Como pĂĄlidas sedas, arrastando…

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando…

Chopin

NĂŁo se acende hoje a luz…Todo o luar
Fique lĂĄ fora.Bem Aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordĂŁo de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco…um morcego a palpitar
Passa…torna a passar…torna a passar…
As coisas tĂȘm o ar de adormecidas…

Mansinho…Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, SacrĂĄrio de Almas, meu Amado!

E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridĂŁo da sala…

RuĂ­nas

Se Ă© sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida Ă© um constante derruir
De palĂĄcios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruĂ­nas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida Ă© um contĂ­nuo destruir
De palĂĄcios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rĂștilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguĂȘ-los
Mais alto do que as ĂĄguias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
SĂŁo como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… Deixa-os tombar.

Aos Olhos Dele

Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram o
As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:
NĂŁo acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavĂ­ssima de dor…
E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m’encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!

PanteĂ­smo

Ao Botto de Carvalho

Tarde de brasa a arder, sol de verĂŁo
Cingindo, voluptuoso, o horizonte…
Sinto-me luz e cor, ritmo e clarĂŁo
Dum verso triunfal de Anacreonte!

Vejo-me asa no ar, erva no chĂŁo,
Oiço-me gota de ågua a rir, na fonte,
E a curva altiva e dura do MarĂŁo
É o meu corpo transformado em monte!

E de bruços na terra penso e cismo
Que, neste meu ardente panteĂ­smo
Nos meus sentidos postos e absortos

Nas coisas luminosas deste mundo,
A minha alma Ă© o tĂșmulo profundo
Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos!

Languidez

Tardes da minha terra, doce encanto,
Tardes duma pureza de açucenas,
Tardes de sonho, as tardes de novenas,
Tardes de Portugal, as tardes de Anto,

Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto!
Horas benditas, leves como penas,
Horas de fumo e cinza, horas serenas,
Minhas horas de dor em que eu sou santo!

Fecho as pĂĄlpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar …

E a minha boca tem uns beijos mudos …
E as minhas mĂŁos, uns pĂĄlidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar …

As Minhas IlusÔes

Hora sagrada dum entardecer
De Outono, Ă  beira-mar, cor de safira,
Soa no ar uma invisĂ­vel lira …
O sol Ă© um doente a enlanguescer …

A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num Ășltimo suspiro, a estremecer!

O sol morreu … e veste luto o mar …
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol de espuma.

As minhas IlusÔes, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna de oiro,
No mar da Vida, assim … uma por uma …

À Tua Porta Há um Pinheiro Manso

À tua porta há um pinheiro manso
De cabeça pendida, a meditar,
Amor! Sou eu, talvez, a contemplar
Os doces sete palmos do descanso.

Sou eu que para ti atiro e lanço,
Como um grito, meus ramos pelo ar,
Sou eu que estendo os braços a chamar
Meu sonho que se esvai e não alcanço.

Eu que do sol filtro os ruivos brilhos
Sobre as louras cabeças dos teus filhos
Quando o meio-dia tomba sobre a serra…

E, Ă  noite, a sua voz dolente e vaga
É o soluço da minha alma em chaga:
Raiz morta de sede sob a terra!

A Voz da TĂ­lia

Diz-me a tĂ­lia a cantar: “Eu sou sincera,
Eu sou isto que vĂȘs: o sonho, a graça,
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera…

E de manhĂŁ o sol Ă© uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça…
Trago nas mĂŁos as mĂŁos da Primavera…
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E Ă  minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine…”

E, ao ver-me triste, a tĂ­lia murmurou:
“JĂĄ fui um dia poeta como tu…
Ainda hĂĄs de ser tĂ­lia como eu sou…”

Tarde De MĂșsica

SĂł Schumann, meu Amor! Serenidade…
NĂŁo assustes os sonhos…Ah! nĂŁo varras
As quimeras…Amor, senĂŁo esbarras
Na minha vaga imaterialidade…

Liszt, agora o brilhante; o piano arde…
Beijos alados…ecos de fanfarras…
PĂ©talas dos teus dedos feitos garras…
Como cai em pĂł de oiro o ar da tarde!

Eu olhava para ti…”Ă© lindo! Ideal!”
Gemeram nossas vozes confundidas.
— Havia rosas cor-de-rosa aos molhos —

Falavas de Liszt e eu…da musical
Harmonia das pĂĄlpebras descidas,
Do ritmo dos teus cĂ­lios sobre os olhos…

Navios-Fantasmas

O arabesco fantĂĄstico do fumo
Do meu cigarro traça o que disseste,
A azul, no ar, e o que me escreveste,
E tudo o que sonhaste e eu presumo.

Para a minha alma estĂĄtica e sem rumo,
A lembrança de tudo o que me deste
Passa como navio que perdeste,
No arabesco fantĂĄstico do fumo…

LĂĄ vĂŁo! LĂĄ vĂŁo! Sem velas e sem mastros,
TĂȘm o brilho rutilante de astros,
Navios-fantasmas, perdem-se a distĂąncia!

VĂŁo-me buscar, sem mastros e sem velas,
Noiva-menina, as doidas caravelas,
Ao ignoto PaĂ­s da minha infĂąncia…