Vénus
I
À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.O seu esboço, na marinha turva…
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando…E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina…
_ Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
_ Ó fúlgida visão, linda mentira!Róseas unhinhas que a maré partira…
Dentinhos que o vaivém desengastara…
Sonetos sobre Areia de Camilo Pessanha
7 resultadosCaminho II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
– Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinhoÉ longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue choramos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
Caminho
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
– Bom dia, companheiro – te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue chorámos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
Quando Voltei Encontrei Os Meus Passos
Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a úmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
– Tão rediviva! nos meus olhos baços…Olhos turvos de lágrimas contidas.
– Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça…Toda essa extensa pista – para quê?
Se há de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa…
Vênus II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina…
– Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
– Ó fúlgida visão, linda mentira!Róseas unhinhas que a maré partira…
Dentinhos que o vaivém desengastara…
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…
Vênus I
À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.O seu esboço, na marinha turva…
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando…E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.
Caminho
I
Tenho sonhos cruéis; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!…Porque a dor, esta falta d_harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d’agora,Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
d Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinhoÉ longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue choramos a dor de cada um…