Sonetos de Francisco de Quevedo

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Sonetos de Francisco de Quevedo. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

Tanto Mais Vives Quanto Mais te Estreitas

A UM AMIGO QUE RETIRADO DA CORTE PASSOU A SUA VIDA

Ditoso tu, porque em tua cabana,
moço e velho espiraste a brisa pura,
servindo-te de berço e sepultura
de palha o tecto, o solho de espadana.

Na solidão em que, livre, se ufana
silente sol com chama mais segura,
cada um dos dias mais espaço dura,
e a hora, sem ter voz, te desengana.

Tu não contas por cônsules os anos;
teu calendário fazem-no as colheitas;
pisas todo o teu mundo sem enganos.

De tudo quanto ignoras te aproveitas;
prémios não buscas nem padeces danos,
tanto mais vives quanto mais te estreitas.

Tradução de José Bento

Viver é Caminhar Breve Jornada

DESPREOCUPAÇÃO DO VIVER DISTRAÍDO A QUEM A MORTE CHEGA INESPERADA

Viver é caminhar breve jornada,
e morte viva é, Lico, a nossa vida,
ontem p’ra o frágil corpo amanhecida,
cada instante, no corpo sepultada.

Nada que, ao ser, é pouco, e será nada
em pouco tempo, que ambiciosa olvida;
pois, da vaidade mal persuadida,
deseja duração, terra animada.

Levada por um falso pensamento,
por esperança enganadora e cega,
tropeçará no próprio monumento.

Como o que, distraído, o mar navega,
e, sem se mover, voa com o vento,
e, antes que pense em abeirar-se, chega.

Tradução de José Bento

Pedes a Deus Quanto a ti te Quitas

QUE COM OS SEUS EXCESSOS ACELERAM A DOENÇA E A VELHICE

Que os anos sobre ti voem bem leves,
pedes a Deus; e que o rosto as pegadas
deles não sinta, e às grenhas bem penteadas
não transmita a velhice suas neves.

Isto lhe pedes, e bêbedo bebes
as vindimas em taças coroadas;
e pra teu ventre todas as manadas
que Apúlia pastam são bocados breves.

Pedes a Deus quanto a ti te quitas;
a enfermidade e a velhice tragas
e estar isento delas solicitas.

Mas em rugosa pele dívidas pagas
das grandes bebedeiras que vomitas,
e na saúde que, comilão, estragas.

Tradução de José Bento

Soneto Amoroso Defendendo o Amor

SONETO AMOROSO DEFENDENDO O AMOR

É gelo abrasador, fogo gelado,
é ferida que dói e não se sente,
é um sonhado bem, um mal presente,
é um breve descanso fatigado;

é um sossego que nos dá cuidado,
um cobarde com nome de valente,
solitário andar por entre gente,
um amar nada mais que ser amado;

é uma liberdade encarcerada,
que dura até ao último momento;
doença que piora se é tratada.

Este o menino Amor, o seu tormento.
Vede a amizade que terá com nada
o que em tudo vai contra o seu intento!

Tradução de José Bento

O Amor não Tem Nenhuma Parte Terrena

Por ser maior o cerco de ouro ardente
do sol que o globo opaco que é a terra,
e menor que este o que à lua encerra
as três caras que mostra diferente,

ora a vemos minguante, ora crescente,
ora na sombra o eclipse a enterra;
porém aos seis planetas não faz guerra,
nem uma estrela sua injúria sente.

A fogueira do meu amor, cravada
no zénite do vasto firmamento,
não baixa em sombras ou está eclipsada.

Manchas da terra não as experimento:
que sua noite dista da sagrada
região onde minha fé tem seu assento.

Tradução de José Bento

A Brevidade da Vida

MANIFESTA-SE A PRÓPRIA BREVIDADE DA VIDA, SEM PENSAR E COM PADECER, ASSALTADA PELA MORTE

Foi sonho ontem: será amanhã terra;
pouco antes, nada; pouco depois, fumo;
e destino ambições, até presumo
nem um momento o cerco que me encerra.

Breve combate de importuna guerra,
p’ra defender-me, sou perigo sumo;
quando com minhas armas me consumo,
menos me hospeda o corpo, que me enterra.

Foi-se o ontem; amanhã é esperado;
hoie passa, e é, e foi com movimento
que me conduz à morte despenhado.

Enxadas são a hora e o momento;
pagas por minha pena e meu cuidado,
cavam em meu viver meu monumento.

Tradução de José Bento

Amar é Conhecer Virtude Ardente

AMOR QUE, SEM DETER-SE NO ASPECTO SENSITIVO, PASSA AO INTELECTUAL

Mandou-me, ai Fábio!, que a amasse Flora,
e que não a quisesse; meu cuidado,
obediente, confuso, torturado,
sem desejá-la, tal beleza adora.

O que o humano afecto sente e chora
goza o entendimento, enamorado
do espírito eterno, encarcerado
neste claustro mortal que o entesoura.

Amar é conhecer virtude ardente;
o querer é vontade interessada,
grosseira e rude, passageiramente.

O corpo é terra, sê-lo-á, foi nada;
de Deus procede à eternidade a mente:
eterno amante sou de eterna amada.

Tradução de José Bento

Os Enganos do Viver

REPETE A FRAGILIDADE DA VIDA E APONTA OS SEUS ENGANOS E OS SEUS INIMIGOS

Que outra verdade hav’rá senão pobreza
nesta vida tão frágil, leviana?
Os dois embustes são da vida humana,
no berço começando, honra e riqueza.

O tempo, que não volta nem tropeça,
em horas fugitivas só a engana;
em errado ansiar, sempre tirana,
Fortuna faz cansar sua fraqueza.

Vive morte calada e divertida
a própria vida; a saúde é guerra
por seu próprio alimento combatida.

Oh, quanto, distraído, o homem erra:
que em terra teme ver tombar a vida
e não vê que, ao viver, caiu por terra!

Tradução de José Bento

Desenganado da Aparência Exterior

DESENGANADO DA APARÊNCIA EXTERIOR COM O EXAME INTERIOR E VERDADEIRO

Vês tu este gigante corpulento
que solene e soberbo se reclina?
Pois por dentro é farrapos e faxina,
e é um carregador seu fundamento.

Com sua alma vive e é movimento,
e onde ele quer sua grandeza inclina;
mas quem seu modo rígido examina
despreza tal figura e ornamento.

São assim as grandezas aparentes
da presunção vazia dos tiranos:
fantásticas escórias eminentes.

Vês que, em púrpura ardendo, são humanos?
As mãos com pedrarias são diferentes?
Pois dentro nojo são, terra e gusanos.

Tradução de José Bento