Tudo Se Me Evapora
Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.
Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desconheço-me deles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.
Textos sobre ConfusĂŁo de Fernando Pessoa
2 resultadosEstar Sozinho
Tornei-me um homem da multidĂŁo. Nunca confiei em mim prĂłprio o bastante para estar sozinho. Dia e noite caminhava lestamente atravĂ©s das multidões, acotovelando, agarrando-me ansioso a quem pudesse. Muitos pensavam que eu era ladrĂŁo. Mas comprimia o meu corpo contra o corpo dos outros como uma criança se agarra Ă mĂŁe durante uma tempestade. Procurava tapar os olhos Ă minha consciĂŞncia como uma criança procura nĂŁo avistar o relâmpago; esforçava-me por tapar os meus ouvidos mentais, como uma criança procura esconder-se no regaço da mĂŁe para nĂŁo ouvir o som dos trovões. E se houvesse uma clareira nessa multidĂŁo, apressava-me, corria, os braços esticados, ansioso pelo toque do corpo de alguĂ©m, o meu prĂłprio corpo ansioso pelo contacto fugaz. E sempre, sempre, entre a confusĂŁo e o ruĂdo das passadas, tremia a ouvir esses passos constantes, inexoráveis.