O Primeiro Beijo
Durante todas as noites desse verĂŁo, as estrelas foram lĂquidas no cĂ©u. Quando eu as olhava, eram pontos lĂquidos de brilho no cĂ©u. Na primeira vez, encontrĂĄmo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou trĂȘs palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caĂa como se flutuasse: cair atravĂ©s do cĂ©u dentro de um sonho.
Naquela noite, fiquei a esperĂĄ-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensĂŁo. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma Ășnica forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao cĂ©u claro da noite. E faltou uma batida ao coração.
O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer.
Textos sobre Encontro de JosĂ© LuĂs Peixoto
3 resultadosNa Tua Voz, IrmĂŁo
Estavam sentados e nĂŁo falavam. Cada um olhava para um lado que nĂŁo via. AtrĂĄs dos rostos tristes, cismavam. Pensando, MoisĂ©s dizia palavras ao irmĂŁo, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia serĂĄ um instante e trarĂĄ a solidĂŁo. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. JĂĄ reparaste?, nunca precisĂĄmos de nos chamar. NĂŁo sei como Ă© o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmĂŁo, irmĂŁo. NĂŁo sei como Ă© o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero serĂĄ a antecĂąmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidĂŁo. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nĂłs para sermos sĂł tu e sĂł eu. Mas nĂŁo esqueceremos. E lembrarmo-nos serĂĄ o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e nĂŁo podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordĂĄvamos e olhĂĄvamos um para o outro, pois tĂnhamos acordado ao mesmo tempo e tĂnhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,
Pai, Quero que Saibas
Ă o teu rosto que encontro. Contra nĂłs, cresce a manhĂŁ, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, nĂŁo te posso esconder, ainda hĂĄ uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz ïŹna a recordar-me todo o silĂȘncio desse silĂȘncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz ïŹna sobre mim que sou sombra, luz ïŹna a recortar-me de mim, tĂ©nue, sombra apenas. NĂŁo te posso esconder, depois de ti, ainda hĂĄ tudo isto, toda esta sombra e o silĂȘncio e a luz fina que agora Ă©s.