A minha vida real. Sinto dores concretas pelas horas em que nĂŁo vi os meus filhos crescer. Sou previsĂvel, embora humano. E reĂşno os momentos de ternura que tivemos, como peças de um puzzle incompleto. Olho-os ao longe, aqueço-me neles como numa lareira.
Passagens de JosĂ© LuĂs Peixoto
226 resultadosNo mundo inteiro, por todos os cantos da terra, há tantas maneiras, tantos feitios e, mesmo assim, não há quem exista isento de dor. Procurando, todos encontram ao menos uma queixa.
Quando Chegar esse Momento
Meu querido, que Ă©s o meu querido. Tanto que eu esperei por isto, meu amor bendito. Tantas noites acordada a olhar para o tecto do quarto, a noite inteira a passar tĂŁo devagarinho e eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. E agora, finalmente, finalmente. Em certos dias, eu atĂ© me parecia que… (passa a mĂŁo pelo rosto) Mas o que Ă© que Ă© preciso fazer, pensava eu. Se houvesse alguma coisa para fazer, eu tinha feito. Nem que fosse… Eu sei lá. Eu fiz tanta coisa, meu doce. E eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. Eu atĂ© me parecia que… (passa a mĂŁo pelo rosto) Mas passou-se tudo. E agora, finalmente, finalmente. Dá cá um bocanço, meu santo amor. Dá cá o nosso primeiro bocanço de casados. Agora, podemos descansar, temos a vida toda Ă nossa frente.
(O tempo permanece suspenso e infinito.)
A inconstância é uma forma de diferença, mas mesmo a diferença pode ser diferente de dia para dia, de hora para hora, de cada instante inconstante para cada instante inconstante.
Uma máquina: aquilo que entra determina aquilo que sai. Se passámos o dia a receber notĂcias de crimes, assassĂnios Ă facada, corpos esquartejados, teremos medo Ă noite, caminharemos receosos pelos cantos. AtĂ© o espelho será olhado com desconfiança.
Não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer.
Ninguém aprende a tocar guitarra sem aleijar as pontas dos dedos. Se eu me tivesse convencido de que não aguentava mais, tinhas ficado por nascer. Às vezes, o cansaço é uma forma de medo.
A memĂłria como uma maldição. CaĂmos na eternidade e a memĂłria Ă© um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca poderemos voltar.
O Pior Medo Ă© o Medo de NĂłs PrĂłprios
O medo Ă© muitas vezes o muro que impede as pessoas de fazerem uma sĂ©rie de coisas. Claro que o medo tambĂ©m pode ser positivo, em certa medida ajuda a que se equilibrem alguns elementos e se tenham certas coisas em consideração, mas na maior parte dos casos Ă© negativo, Ă© algo que nos faz mal. (…) O pior medo Ă© o medo de nĂłs prĂłprios e a pior opressĂŁo Ă© a auto-opressĂŁo. Antes de se tentar lutar contra qualquer outra coisa, penso que Ă© importante lutarmos contra ela e conquistarmos a liberdade de nĂŁo termos medo de nĂłs prĂłprios.
Entre o infinito do céu e o infinito da terra, existe o teu infinito, igualmente desmedido e ilimitado. Mãe, o tempo não é capaz de conter-te.
O Ăşnico impossĂvel Ă© o que julgarmos que nĂŁo somos capazes de construir.
O livro não depende da minha intenção. Se ele não for isso, ele não deixa de ser aquilo que é para passar a ser aquilo que eu digo que ele é. Como também não depende da pessoa que lê. Haverá qualquer outra coisa, por debaixo disso tudo: a verdade, que é uma palavra muito complicada.
Os anos encarregar-se-ão de apagar tudo o que julguei ser certo e nunca foi, para ficar apenas o que aconteceu e, por fim, até isso ser também esquecido.
gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te
gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te.
homens isolados caminham nas avenidas e eu amo-te.
silĂŞncios elĂ©ctricos faĂscam dentro das máquinas e eu amo-te.
destruição contra o caos, destruição contra o caos e eu amo-te.
reflexos de corpos desfiguram-se nas montras e eu amo-te.
envelhecem anos no esquecimento dos armazéns e eu amo-te.
toda a cidade se destina Ă noite e eu amo-te.
Vivemos num individualismo muito cru. As pessoas sĂŁo levadas a acreditar que a promoção do conforto fĂsico e das aparĂŞncias Ă© o que mais conta. Existe uma desvalorização do conforto afectivo e moral. Existe a ideia errada de que podemos ser felizes sozinhos ou, pior ainda, contra os outros.
A planĂcie Ă© velha de muito ter visto. Sabe a vida dos pássaros, que larga como mensageiros ao cĂ©u; sabe a das cigarras, que acolhe na sua pele para que cantem depois do calor; sabe a vida dos homens, que permite e sepulta piedosamente.
O caminho da justiça Ă© uma linha fina, desacerta-se ao milĂmetro. Já o caminho da infâmia Ă© tudo o resto, pode avançar-se durante anos nesse terreno sem lhe achar o fim.
ConstruĂ uma prisĂŁo com aquilo que julgava libertar-me. Descobri, tarde demais, que existem muros feitos de planĂcies.
Durante uma vida completa, as espigas também são farinha e pão. Assim se compreendem os meandros dos rios mais irregulares: as contrariedades são tão indispensáveis como as grandes vitórias.
Como as palavras, os nossos nomes também estão sujeitos a ser moldados pela intenção e pelo tom. A intenção é o lugar onde nascem. O tom é a forma como se desenvolvem. Dependendo da intenção e do tom, muitas vezes somos os nossos nomes, noutras vezes não.