Passagens de José Luís Peixoto

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Penso: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens nĂŁo sejam feitos de escuridĂŁo, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem.

As Pernas Pesadas

Hoje, temos as pernas pesadas com o nosso peso. Andamos a ver onde pomos os pés, a acautelarmo-nos para não cair, porque se partíssemos uma perna era a nossa morte. Sentimos uma tremura invisível nas pernas, e hoje avançou essa tremura para o dobro, e já se nota ao olhar. Os ossos não se dobram da mesma maneira. Até o respirar é muito diferente do que já foi. Dantes, era corrido, era uma coisa em que não reparávamos. Hoje, é precisa mais força para sorver o ar e, quando o sopramos, soltamos um ruído de asma, como se tivéssemos o pescoço meio entupido ou tivéssemos engolido uma gaita enferrujada.

na hora de pĂ´r a mesa, Ă©ramos cinco

na hora de pĂ´r a mesa, Ă©ramos cinco:
o meu pai, a minha mĂŁe, as minhas irmĂŁs
e eu. depois, a minha irmĂŁ mais velha
casou-se. depois, a minha irmĂŁ mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pĂ´r a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmĂŁ mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mĂŁe viĂşva. cada um
deles Ă© um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irĂŁo estar sempre aqui.
na hora de pĂ´r a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nĂłs estiver vivo, seremos
sempre cinco.

Ao longo de uma vida, todas as pessoas tomam decisões erradas. Algumas dessas decisões magoam outros, causam-lhes sofrimento verdadeiro. No entanto, a grande maioria desses erros não são citados pelo código penal. Na verdade, só estão citados aqueles que são concebíveis pelos espíritos práticos: os que são quantificáveis, claramente observáveis, indiscutivelmente concretos. Só é pena que a vida não seja assim: indiscutivelmente concreta.

Aquilo que te digo, transforma-se em cinza ainda antes de te tocar. Quando chega à página, quando sai dos meus lábios, quando termina de se formar dentro de mim, já é cinza. Ou ainda menos do que cinza. Ainda menos do que fumo. Nem sequer a sensação de fumo, o calor do fumo, o cheiro do fumo. Aquilo que tens é o pouco, o quase nada que sou capaz de te dar. Eu gostava. Desejava com todas as forças ser capaz de dar-te tudo, mas existe um muro de significados que não o permite.

Momentos que o fim torna ridículos. Momentos que fazem viver, esperando por um dia, depois de todas as desilusões, depois de todos os arrependimentos e fracassos, em que se possam viver de novo, para de novo chegar o fim e de novo a esperança e de novo o fim.

A outra pessoa não é apenas uma imagem. É um silêncio morno, monstro, a explodir significados que não somos capazes de entender, mas que distinguimos até ao centro do nevoeiro mais sólido e que, se for preciso, defendemos até a nossa pele se gastar, até gastarmos a pele e, claro, morrermos.

A lógica, o absurdo da lógica e a lógica precisa, milimétrica, do absurdo são para mim assuntos que me absorvem, como se fossem, de facto, a primeira regra da minha vida.

A minha vida real. Sinto dores concretas pelas horas em que não vi os meus filhos crescer. Sou previsível, embora humano. E reúno os momentos de ternura que tivemos, como peças de um puzzle incompleto. Olho-os ao longe, aqueço-me neles como numa lareira.

No mundo inteiro, por todos os cantos da terra, há tantas maneiras, tantos feitios e, mesmo assim, não há quem exista isento de dor. Procurando, todos encontram ao menos uma queixa.

Quando Chegar esse Momento

Meu querido, que Ă©s o meu querido. Tanto que eu esperei por isto, meu amor bendito. Tantas noites acordada a olhar para o tecto do quarto, a noite inteira a passar tĂŁo devagarinho e eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. E agora, finalmente, finalmente. Em certos dias, eu atĂ© me parecia que… (passa a mĂŁo pelo rosto) Mas o que Ă© que Ă© preciso fazer, pensava eu. Se houvesse alguma coisa para fazer, eu tinha feito. Nem que fosse… Eu sei lá. Eu fiz tanta coisa, meu doce. E eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. Eu atĂ© me parecia que… (passa a mĂŁo pelo rosto) Mas passou-se tudo. E agora, finalmente, finalmente. Dá cá um bocanço, meu santo amor. Dá cá o nosso primeiro bocanço de casados. Agora, podemos descansar, temos a vida toda Ă  nossa frente.

(O tempo permanece suspenso e infinito.)

A inconstância é uma forma de diferença, mas mesmo a diferença pode ser diferente de dia para dia, de hora para hora, de cada instante inconstante para cada instante inconstante.

Uma máquina: aquilo que entra determina aquilo que sai. Se passámos o dia a receber notícias de crimes, assassínios à facada, corpos esquartejados, teremos medo à noite, caminharemos receosos pelos cantos. Até o espelho será olhado com desconfiança.

Ninguém aprende a tocar guitarra sem aleijar as pontas dos dedos. Se eu me tivesse convencido de que não aguentava mais, tinhas ficado por nascer. Às vezes, o cansaço é uma forma de medo.

A memória como uma maldição. Caímos na eternidade e a memória é um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca poderemos voltar.

O Pior Medo Ă© o Medo de NĂłs PrĂłprios

O medo Ă© muitas vezes o muro que impede as pessoas de fazerem uma sĂ©rie de coisas. Claro que o medo tambĂ©m pode ser positivo, em certa medida ajuda a que se equilibrem alguns elementos e se tenham certas coisas em consideração, mas na maior parte dos casos Ă© negativo, Ă© algo que nos faz mal. (…) O pior medo Ă© o medo de nĂłs prĂłprios e a pior opressĂŁo Ă© a auto-opressĂŁo. Antes de se tentar lutar contra qualquer outra coisa, penso que Ă© importante lutarmos contra ela e conquistarmos a liberdade de nĂŁo termos medo de nĂłs prĂłprios.

Entre o infinito do céu e o infinito da terra, existe o teu infinito, igualmente desmedido e ilimitado. Mãe, o tempo não é capaz de conter-te.