Uma Mentira
Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo. Aquilo que sabemos tem muita importância. Tomamos decisões, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virá a seguir, o futuro atĂ© ao fim dos tempos, será diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificâncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa Ă© uma máquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros tĂŞm da realidade, leva-os a acreditar que Ă© aquilo que nĂŁo Ă©. Essa poluição vai turvar-lhes a lĂłgica do mundo. As conclusões a que forem capazes de chegar serĂŁo calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serĂŁo multiplicações de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo nĂŁo lhe dá cobertura. Para alcançar coerĂŞncia, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte. É assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro, como uma toupeira cega a abrir tĂşneis e câmaras no interior da terra. Quando se abre a boca para libertar uma mentira, a primeira, filha de nada que a justifique, nunca se consegue ter noção completa de onde chegará. Nesse momento, na inocĂŞncia aparente, com voz de gatinho acabado de nascer, está a soltar-se um predador voraz, nĂŁo há fronteiras marcadas para a sua fome. Uma mentira pode construir edifĂcios imensos, levantar cidades; uma mentira pode colocar em movimento milhares de pessoas, pode dar propĂłsito a multidões incalculáveis, cada pontinho a ser uma cabeça com histĂłria; uma sĂł mentira pode manter em cativeiro gerações inteiras de pessoas que ainda nĂŁo nasceram, netos que os avĂłs nĂŁo sĂŁo capazes de imaginar, ignorantes da mentira original que os domina.