Da Desigualdade que Existe Entre os Homens
Plutarco diz nalgum lugar que não observa entre um animal e outro distância tão grande como encontra entre um homem e outro. Está a falar do valor da alma e das faculdades interiores. Na verdade, observo tanta distância de Epaminondas, como o imagino, até alguém que conheço, quero dizer capaz de senso comum, que de bom grado eu iria além de Plutarco e diria que há mais distância entre tal e tal homem do que há entre tal homem e tal animal: Ah! Entre um homem e outro homem, quanta distância! (Terêncio), e que há tantos graus de espíritos quantas braças há daqui ao céu, e igualmente inumeráveis.
Mas, a propósito da avaliação dos homens, é espantoso que, excepto nós, todas as coisas sejam avaliadas tão-somente pelas suas próprias qualidades. Elogiamos um cavalo porque é vigoroso e ágil, e não pelos arreios; um galgo pela sua velocidade, não pela coleira; um pássaro pela envergadura e não pelas suas correias e sinetas. Por que da mesma forma não avaliamos um homem pelo que é propriamente seu? Ele tem um alto nível de vida, um belo palácio, tanto de crédito, tanto de renda: tudo isto está ao redor dele e não nele.
Passagens sobre Verdade
2286 resultadosAs lendas hão de sempre viver, como raios de luz na treva amontoada do passado, mas a beleza delas não está em sua verdade, que é sempre pequena; está no esforço que a humanidade faz para assim reter alguns episódios de uma vida tão extensa que para abrangê-la não há memória possível…
Erros são, no final das contas, fundamentos da verdade. Se um homem não sabe o que uma coisa é, já é um avanço do conhecimento saber o que ela não é.
O Desespero do Homem de Acção
Há uma ligação muito estreita entre a adoração da acção e o uso do homem como meio de atingir fins que não são o homem. Como há uma ligação aproximada entre este desespero e a acção, entre a razão e a acção. A proeminência dos valores da acção sobre os da contemplação indica, sobretudo, que o homem abandonou totalmente a busca duma ideia aprazível do homem e o desejo de o colocar como fim. E que na impossibilidade de agir segundo um fim, ou de agir para ser homem, ele decide agir de qualquer maneira, apenas para agir.
O homem de acção é um desesperado que procura preencher o vazio do seu próprio desespero com actos ligados mecanicamente uns aos outros e compreendidos entre um ponto de início e um ponto de conclusão, ambos gratuitos e convencionais. Por exemplo, entre o ponto de início da fabricação dum automóvel e o ponto de conclusão dessa fabricação. O homem de acção suspenderá o seu desespero enquanto durar a fabricação do veículo; suspendê-lo-á precisamente porque no seu espírito fica suspensa qualquer finalidade verdadeiramente humana: sente-se meio entre os outros homens, meios como ele. Concluída a máquina ele encontrar-se-á, é verdade, mais inerte e exânime que a própria máquina,
Visio
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam…
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam…
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam…Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes…Depois… depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei… silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
Sei que um homem com um mínimo de volume inspira segurança a uma mulher. Para dizer a verdade, faço um julgamento moral dos homens que têm demasiado cuidado com o seu aspecto. Num mundo tão cheio de tentações, em alguma delas se há-de cair – e antes na boa mesa do que na droga ou na política.
A Livre Discussão dos Problemas
A nossa orientação tem sido sempre contra o reacender de lutas políticas, através de cuja violência e trágicos desfechos vemos outros procurarem a sua felicidade. A política só em sentido deturpado se pode confundir com agitação estéril, referver de ódios, estadear de ambições pessoais ou de grupos para a conquista e usufruição de altos lugares. Nada do que afirmo se opõe evidentemente — vê-se que não se tem oposto — à livre discussão dos problemas. Mas quer dizer que a consciência pública se há-de sobretudo formar na reflexão de argumentos sólidos, sobre o conhecimento do factos certos e bem interpretados, à luz de posições desinteressadas: não na excitação das paixões e na adulteração da verdade.
A inteligência transforma o erro em verdade, e ilude-se a si mesma.
A Verdade
A verdade é semelhante a uma adolescente
vibrante, flexível, em radiosa sombra.
Quando fala é a noite translúcida no mar
e a esfera germinal e os anéis da água.
Um apelo suave obstinado se adivinha.Ela dorme tão perfeitamente despertada
que em si a verdade é o vazio. Ela aspira
à cegueira, ao eclipse, à travessia
dos espelhos até ao último astro. Ela sabe
que o muro está em si. Ela é a sedee o sopro, a falha e a sombra fascinante.
Ela funda uma arquitectura volante
em suspensas superfícies ondulantes.
Ela é a que solicita e separa, delimita
e dissemina as sílabas solidárias.
Abandonado, adj. Sem favores para conceder. Desprovido de fortuna. Devotado a expressar a verdade e o senso comum.
A chama da sabedoria queima as impurezas. Na verdade, não há neste mundo purificante que se iguale à sabedoria.
O amor sem verdade é cego e dura pouco
O amor sem verdade é cego e dura pouco.
A Sensura
A nossa sociedade autoriza tudo o que não a incomoda. Se isto já não é plenamente verdade nos nossos dias, e se estamos em crise, é porque o interesse imediato dos que estão no poder se encontra em contradição com os valores que fundamentam este mesmo poder. É-lhes necessário, por exemplo, incentivar o consumo que os enriquece, em detrimento da moral que os legitima. Pela primeira vez, o poder fundamenta-se na confusão e não na ordem. Daí a mentira generalizada, de que a língua sofre.
A permissividade actual autoriza que se diga tudo porque este tudo já não significa nada. A palavra torna-se inofensiva por privação de sentido. A escrita sofre a mesma privação nas suas formas normalizadas: publicidade, jornalismo, best-sellers, que passam por escrita quando não o são.
O objectivo da antiga censura consistia em tornar o adversário inofensivo, privando-o dos seus meios de expressão; a nova – que denominei sensura – esvazia a expressão para a tornar inofensiva, método mais radical e menos visível.
Toda a verdade cansa. A génese da História está aí.
A Fronteira entre a Juventude e a Velhice
Creio que se pode traçar uma fronteira muito precisa entre a juventude e a velhice. A juventude acaba quando termina o egoísmo, a velhice começa com a vida para os outros. Ou seja: os jovens têm muito prazer e muita dor com as suas vidas, porque eles a vivem só para eles. Por isso todos os desejos e quedas são importantes, todas as alegrias e dores são vividas plenamente, e alguns, quando não vêem os seus desejos cumpridos, desperdiçam toda uma vida. Isso é a juventude. Mas para a maior parte das pessoas vem o tempo em que tudo se modifica, em que vivem mais para os outros, não por virtude, mas porque é assim. A maior parte constitui família. Pensa-se menos em nós próprios e nos nossos desejos quando se tem filhos. Outros perdem o egoísmo num escritório, na política, na arte ou na ciência. A juventude quer brincar, os adultos trabalhar.
Não há quem se case para ter filhos, mas quando chegam, modificamo-nos, e acabamos por perceber que tudo aconteceu por eles. Da mesma forma, a juventude gosta de falar na morte, mas nunca pensa nela; com os velhos acontece o contrário. Os jovens acreditam ser eternos e centram todos os desejos e pensamentos sobre si próprios.
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze,
Por que quero fazer de mim um herói? Eu na verdade sou anti-heroica. O que me atormenta é que tudo é por enquanto, nada é sempre.
Todas as grandes verdades começam por ser blasfémias.
A Ira
O que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado. Quem assim for é gentil, se é que a gentileza é uma disposição louvada. Porque o gentil quer permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e apenas o sentido orientador lhe poderá prescrever as situações em que deve irritar-se e durante quanto tempo. Ou seja, o gentil parece pecar mais por defeito, porque não é do tipo vingativo mas mais do género que perdoa.
O defeito, seja uma certa fleuma seja o que for, é repreendido. Os que não se irritam quando têm motivo parecem parvos, o mesmo quando não se irritam de modo correcto, nem quando devem, nem com aqueles que devem. Parece até que não sentem a injúria ou não sofrem com ela. Mas se não se irritarem não conseguem defender-se, e aguentar um insulto ou tolerar os insultos feitos a terceiros é uma característica de subserviência.
Há excessos a respeito de todos os elementos circunstanciais envolvidos num acesso de ira (seja por se dirigir contra as pessoas indevidas,
Povo
Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia…
Mas a tua vida, não!Fui ter à mesa redonda,
Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão…
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços…
Mas a tua vida, não!Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama…
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las…
Mas a tua vida, não!Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.