Passagens sobre Multidão

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A Posteridade é uma Sobreposição de Minorias

Aquele que despreza o aplauso da multidão de hoje, é o que procura sobreviver em renovadas minorias, durante gerações. «A posteridade é uma sobreposição de minorias», dizia Gounod. Quer-se prolongar mais no tempo do que no espaço. Os ídolos das multidões são derrubados prontamente por elas mesmas, e a sua estátua desfaz-se ao pé do pedestal, sem que ninguém olhe para ela, enquanto que aqueles que conquistam o coração dos escolhidos receberão, por mais tempo, um culto fervoroso numa capela, ainda que recolhida e pequena, mas que salvará as avenidas do esquecimento. O artista sacrifica a grandeza da sua fama à sua duração; anseia mais por durar sempre num recôndito, do que que brilhar um segundo no universo todo; antes quer ser o átomo eterno e consciente de si mesmo, do que a momentânea consciência do universo todo; sacrifica a infinidade à eternidade.

A Arte da Retórica Floresce nas Sociedades Decadentes

Um retórico do passado dizia que o seu ofício era fazer que as coisas pequenas parecessem grandes e como tais fossem julgadas. Dir-se-ia um sapateiro que, para calçar pés pequenos, sabe fazer sapatos grandes. Em Esparta ter-lhe-iam dado a experimentar o azorrague por professar uma arte trapaceira e mentirosa. E creio que Arquidamo, que foi seu rei, não terá ouvido sem espanto a resposta de Tucídides, ao qual perguntara quem era mais forte na luta, se Péricles, se ele: «Isso será difícil de verificar, pois quando o deito por terra, ele convence os espectadores que não caiu, e ganha». Os que, com cosméticos, caracterizam e pintam as mulheres fazem menos mal, pois é coisa de pouca perda não as ver ao natural, ao passo que estoutros fazem tenção de enganar, não já os olhos, mas o nosso juízo, e de abastardar e corromper a essência das coisas. Os Estados que longamente se mantiveram em boa ordem e bem governados, como o cretense e o lacedemónio, não tinham em grande conta os oradores.
Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, como a arte de enganar e lisonjear; e aqueles que isto negam na sua definição genérica,

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Os Melhores Momentos do Amor

Nos transportes do amor, na conversa com a amada, nos favores que recebes dela, até nos mais extremos, vais mais em busca da felicidade do que à tentação de provar isso de que o teu coração agitado sente uma grande falta, um não-sei-quê de menos do que ele esperava, um desejo de algo, mesmo de muito mais. Os melhores momentos do amor são aqueles de uma tranquila e doce melancolia em que choras e não sabes porquê, e te resignas quase na quietude a um infortúnio que desconheces. Nessa quietude, a tua alma está quase cumulada, e quase sente o gosto da felicidade. Assim como no amor, que é o estado da alma mais rico de prazeres e ilusões, a melhor parte, a via mais correcta para o prazer e para uma sombra de felicidade é a dor.
(…) Quando um homem concebe o amor, o mundo inteiro se dissipa aos seus olhos, ele não vê nada além do ser amado, está no meio da multidão, das conversas, em plena solidão, abstraído, fazendo os gestos que lhe inspira esse pensamento sempre imóvel e muito poderoso, sem se preocupar com a surpresa nem com o desprezo alheios, ele se esquece de tudo e tudo lhe parece tedioso sem esse único pensamento,

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Nossa alma é composta de átomos, por isso é mortal como nosso corpo, nos é dado viver uma só vez. As multidões se consolam com a esperança de outra vida melhor.

Velho Tema III

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Tem a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas…

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher armada.

Somos Irracionais

No meu tempo de escola primária, algumas crédulas e ingénuas pessoas, a quem dávamos o respeitoso nome de mestres, ensinaram-me que o homem, além de ser um animal racional, era, também, por graça particular de Deus, o único que de tal fortuna se podia gabar. Ora, sendo as primeiras lições aquelas que mais perduram no nosso espírito, ainda que, muitas vezes, ao longo da vida, julguemos tê-las esquecido, vivi durante muitos anos aferrado à crença de que, apesar de umas tantas contrariedades e contradições, esta espécie de que faço parte usava a cabeça como aposento e escritório da razão. Certo era que o pintor Goya, surdo e sábio, me protestava que é no sono dela que se engendram os monstros, mas eu argumentava que, não podendo ser negado o surgimento dessas avantesmas, tal só acontecia quando a razão, pobrezinha, cansada da obrigação de ser razonável, se deixava vencer pela fadiga e mergulhava no esquecimento de si própria. Chegado agora a estes dias, os meus e os do mundo, vejo-me diante de duas probabilidades: ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é, também indubitavelmente, o mais irracional de todos eles.

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Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros.

A Castração da Personalidade

O homem é um animal gregário. Político, dizia Aristóteles, ou seja, membro da cidade. Mas não só da cidade – de todas as greis espontâneas ou artificiais, estáveis ou precárias, onde quer que se encontre. Não pode suportar a ideia de estar só, consigo – quer ser unidade e não individualidade. Tem necessidade de se sentir cotovelo com cotovelo, pele com pele, no calor de uma multidão, ligado, seguro, uniforme, conforme. Se o leão anda só, em nós predomina o instinto ovino, do rebanho – os próprios individualistas, para afirmar o seu individualismo, congregam-se: sempre segundo a prática ovina.

O homem, quando só, sente-se incompleto – tem medo. Opor-se à grei significa separar-se, permanecer só, morrer. Os conceitos do bem e do mal nascem da necessidade de convivência. É bem o que aproveita ao grupo, mal o que o prejudica ou não beneficia. O rebanho não quer que cada ovelha pense demasiado em si, e como a privilegiada é a que obtém a boa opinião das outras, vê-se forçada, ainda que contra os seus gostos e interesses, a agir no sentido do bem supremo do rebanho. Há que pagar, com a castração da personalidade, a segurança contra o medo.

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Amar é sorrir por nada e ficar triste sem motivos, é sentir-se só no meio da multidão, é o ciúme sem sentido, é ser feliz de verdade

O Significado dos Sonhos

Os meu sonhos eram de muitas espécies mas representavam manifestações de um único estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na luxúria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das multidões, aplaudido, desfilando ao longo (…), ora o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que via — cada ideia vinda de fora, cada (…), cada acontecimento era o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco à minha volta. Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visão de mim próprio, tratando-me por capitão, chefiando, ordenando, vitorioso. Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por cometer crimes até me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes sociais,

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É bastante fácil fazer surgir sentimentos na alma das multidões, mas é dificílimo refreá-los. Desenvolvendo-se, convertem-se em forças que não é possível dominar.

Espírito Imortal

Espírito imortal que me fecundas
Com a chama dos viris entusiasmos,
Que transformas em gládios os sarcasmos
Para punir as multidões profundas!

Ó alma que transbordas, que me inundas
De brilhos, de ecos, de emoções, de pasmos
E fazes acordar de atros marasmos
Minh’alma, em tédios por charnecas fundas.

Força genial e sacrossanta e augusta,
Divino Alerta para o Esquecimento,
Voz companheira, carinhosa e justa.

Tens minha Mão, num doce movimento,
Sobre essa Mão angélica e robusta,
Espírito imortal do Sentimento!

A Vantagem do Conhecimento Alargado

No que se refere ao espírito dotado de capacidades elevadas – o único que pode ousar a solução dos grandes e difíceis problemas concernentes ao universal e geral das coisas -, ele fará bem em estender o máximo possível o seu horizonte, mas sempre com equanimidade, para todos os lados, sem se perder muito numa dessas regiões bem específicas e conhecidas apenas por poucos. Ou seja, sem penetrar demasiado profundamente nas especialidades de alguma ciência isolada, muito menos envolver-se com a micrologia. Pois não tem necessidade de se dedicar a objectos de difícil acesso para livrar-se da multidão de concorrentes; pelo contrário, justamente aquilo que está ao alcance de todos é o que fornecerá a matéria para combinações novas, importantes e verdadeiras. Desse modo, o seu mérito poderá ser apreciado por todos os que conhecem os dados, portanto, por uma boa parte do género humano. Nisso reside a imensa diferença entre a glória que os poetas e os filósofos alcançam e aquela acessível a físicos, químicos, anatomistas, mineralogistas, zoólogos, filólogos, historiadores, etc.

Sociedade Espectaculista

A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espectacular, ela é fundamentalmente espectaculista. No espectáculo da imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espectáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo.
Na forma do indispensável adorno dos objectos hoje produzidos, na forma da exposição geral da racionalidade do sistema, e na forma de sector económico avançado que modela directamente uma multidão crescente de imagens-objectos, o espectáculo é a principal produção da sociedade actual.

Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

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Não é a multidão… que às composições de um século confere fama e autoridade, mas sim pouquíssimos homens de cada século, ao juízo dos quais, pelo facto de serem mais eruditos do que outros de alta reputação, a multidão acaba por consagrar.