Textos de José Ortega y Gasset

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Textos de José Ortega y Gasset. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

A Vida é um Drama

Porque a vida, individual ou colectiva, pessoal ou histórica, é a única entidade do universo cuja substância é o perigo. Compõe-se de peripécias. É, rigorosamente falando, drama.
(…) Nós não nos demos a vida, mas esta nos é dada; encontramo-nos nela sem saber como nem por quê; mas do facto de que ela nos é dada resulta que temos de fazê-la nós mesmos, cada um a sua.
(…) A cada minuto precisamos de decidir o que vamos fazer no minuto seguinte, e isto quer dizer que a vida do homem constitui para ele um problema permanente.

A Falsa Igualdade entre os Homens

Debaixo de toda a vida contemporânea encontra-se latente uma injustiça profunda e irritante: a falsa suposição da igualdade real entre os homens. Cada passo que damos entre eles mostra-nos tão evidentemente o contrário que cada caso é um tropeção doloroso.

O Destino de Cada Homem é o Seu Maior Prazer

No ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a facies da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação, da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel dizia, invertendo a relação entre voluptuosidade e destino: «Para o que nos agrada temos génio». O génio, isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Num dia que está próximo e graças a uma transbordante evidência vamo-nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer.

O Primitivo Reina na Civilização Actual

Todo o crescimento de possibilidades concretas que a vida experimentou corre risco de se anular a si mesmo ao topar com o mais pavoroso problema sobrevindo no destino europeu e que de novo formulo: apoderou-se da direção social um tipo de homem a quem não interessam os princípios da civilização. Não os desta ou os daquela, mas – ao que hoje pode julgar-se – os de nenhuma. Interessam-lhe evidentemente os anestésicos, os automóveis e algumas coisas mais. Mas isto confirma o seu radical desinteresse pela civilização. Pois estas coisas são só produtos dela, e o fervor que se lhes dedica faz ressaltar mais cruamente a insensibilidade para os princípios de que nascem. Baste fazer constar este fato: desde que existem as nuove scienze, as ciências físicas – portanto, desde o Renascimento –, o entusiasmo por elas havia aumentado sem colapso, ao longo do tempo. Mais concretamente: o número de pessoas que em proporção se dedicavam a essas puras investigações era maior em cada geração. O primeiro caso de retrocesso – repito, proporcional – produziu-se na geração que hoje vai dos vinte aos trinta anos. Nos laboratórios de ciência pura começa a ser difícil atrair discípulos. E isso acontece quando a indústria alcança o seu maior desenvolvimento e quando as pessoas mostram maior apetite pelo uso de aparelhos e medicinas criados pela ciência.

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O Perigo da Extinção do Individualismo

Ao contemplar nas grandes cidades essas imensas aglomerações de seres humanos, que vão e vêm pelas suas ruas ou se concentram em festivais e manifestações políticas, incorpora-se em mim, obsedante, este pensamento: pode hoje um homem de vinte anos formar um projecto de vida que tenha figura individual e que, portanto, necessitaria realizar-se mediante as suas iniciativas independentes, mediante os seus esforços particulares? Ao tentar o desenvolvimento desta imagem na sua fantasia, não notará que é, senão impossível, quase improvável, porque não há à sua disposição espaço em que possa alojá-la e em que possa mover-se segundo o seu próprio ditame? Logo advertirá que o seu projecto tropeça com o próximo, como a vida do próximo aperta a sua. O desânimo leva-lo-á com a facilidade de adaptação própria da sua idade a renunciar não só a todo o acto, como até a todo o desejo pessoal e buscará a solução oposta: imaginará para si uma vida standard, composta de desideratos comuns a todos e verá que para consegui-la tem de a solicitar ou exigir em coletividade com os demais. Daí a acção em massa.
A coisa é horrível, mas não creio que exagera a situação efectiva em que se vão achando quase todos os europeus.

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A Inteligência não é o Fundo do nosso Ser

A inteligência não é o fundo do nosso ser. Pelo contrário. É como uma pele sensível, tentacular que cobre o resto do nosso volume íntimo, o qual por si é sensu stricto ininteligente, irracional. Barrès dizia isto muito bem: L’intelligence, quelle petite chose à la surface de nous. Aí está ela, estendida como um dintorno sobre o nosso ser mais interior, dando uma face às coisas, ao ser – porque o seu papel não é outro senão pensar as coisas, pensar o ser, o seu papel não é ser o ser, mas reflecti-lo, espelhá-lo. Tanto não somos ela que a inteligência é uma mesma em todos, embora uns dela tenham maior porção que outros. Mas a que tiverem é igual em todos: 2 e 2 são para todos 4. Por isso Aristóteles e o averroísmo acreditaram que havia um único noûs ou intelecto no Universo, que todos éramos, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos individualiza está por trás dela.
Mas não vamos agora espicaçar uma tão difícil questão. Baste o que foi dito para sugerir que em vão pretenderá a inteligência lutar num match de convicção com as crenças irracionais, habituais. Quando um cientista sustém as suas ideias com uma fé semelhante à fé vital,

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Meditação e Opinião

Em matéria de arte, de amor ou de ideias creio serem pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às ideias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida ou já aí existente, do que com mais graves razões que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço intelectual que com rigor o seja afasta-nos solitários da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou programa reduz-se a antecipar esses resultados, deles arrancando previamente a via ao cabo da qual foram descobertos. (…) Um pensamento separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado, é uma abstracção no pior sentido da palavra, e, por esse motivo, é ininteligível.

Disponibilidade Vazia

O cigano foi-se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: «Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor». (…) Todo o mundo – nações, indivíduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze oseu carácter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam com ar festivo este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta é a horrível situação íntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade é maior negação que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado – é cumprir um encargo –,

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A Vida é Absoluta Convicção

A vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido entre as coisas, e enquanto é apenas isso consiste em sentir-se absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas por isso mesmo obriga, quer queiramos quer não, a um esforço para se orientar no caos, para se salvar dessa perdição. Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do universo é o sistema das nossas ideias ou convicções vigentes. Quer queiramos quer não, vivemos com convicções e de convicções. O mais teoreticamente céptico existe apoiando-se num suporte de crenças sobre o que as coisas são. A vida é absoluta convicção. A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma absoluta convicção de que tudo é duvidoso. E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença num ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.

O Tabu e a Metáfora

A metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem possui. A sua eficiência chega a raiar os confins da taumaturgia e parece uma ferramenta de criação que Deus deixou esquecida dentro de uma das suas criaturas na ocasião em que a formou, como o cirurgião distraído deixa um instrumento no ventre do operado.
Todas as demais potências nos mantêm inscritos no interior do real, do que já é. O mais que podemos fazer é somar ou subtrair as coisas entre si. Só a metáfora nos facilita a evasão e cria entre as coisas reais recifes imaginários, floração de leves ilhas.
É verdadeiramente estranha a existência no homem desta actividade mental que consiste em substituir uma coisa por outra, não tanto no esforço de chegar à segunda como no intento de esquivar a primeira. A metáfora escamoteia um objecto mascarando-o por meio de outro, e não teria sentido se não víssemos nela um instinto que induz o homem a evitar as realidades.
Ao interrogar-se sobre qual poderia ser a origem da metáfora, um psicólogo recentemente descobriu, surpreendido, que uma das suas raízes se encontra no espírito do tabu. Houve uma época em que o medo foi a máxima inspiração humana,

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Não há Relação entre as Verdades e o Tempo

A relação das verdades com o tempo não é positiva, mas negativa, é um simples não ter que ver com o tempo em nenhum sentido, é ser por completo alheias a toda a qualificação temporal, é manter-se rigorosamente anacrónicas. Dizer, pois, que as verdades o são sempre não envolve, falando de modo rigoroso, menor impropriedade que se dissermos – para usar uma famoso exemplo trazido por Leibniz a outro propósito -, «justiça verde». O corpo ideal da justiça não oferece um encaixe nem um orifício onde possa enganchar-se o atributo «verdosidade», e todas as vezes em que pretendamos inseri-lo naquele, outras tantas o veremos resvalar sobre a justiça – como sobre uma área polida. A nossa vontade de unir estes dois conceitos fracassa, e, ao dizê-los juntos, permanecem obstinadamente separados, sem possível adesão nem conjugação. Não existe, pois, heterogeneidade maior que a que existe entre o modo de ser atemporal constituitivo das verdades e o modo de ser temporal do sujeito humano que as descobre e pensa, conhece ou ignora, rejeita ou esquece.
Se, não obstante, usamos essa maneira de dizer – «as verdades são-no sempre» -, é porque praticamente isto não leva a consequências erróneas: é um erro inocente e cómodo.

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Não são as Circunstâncias que Decidem a Nossa Vida

A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante, superior a todas as históricamente conhecidas. Mas assim como o seu formato é maior, transbordou todos os caminhos, princípios, normas e ideais legados pela tradição. É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino.

Mas agora é preciso completar o diagnóstico. A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajectória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este,

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A Clareza do Filósofo

Sempre acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso, esta nossa disciplina tem como ponto de honra, hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia hermética. Penso que o filósofo tem que levar até ao limite de si próprio o rigor metódico quando investiga e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e enunciá-las deve evitar o uso cínico com que alguns homens de ciência se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante do público os biceps do seu tecnicismo.

Muitos Meios e Saber de pouco Servem

Vivemos num tempo que se sente fabulosamente capaz de realizar, porém não sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido na sua própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnica do que nunca, afinal de contas o mundo actual vai como o mais infeliz que tenha havido: puramente à deriva.

Só Chegamos a Ser uma Parte Mínima do que Poderíamos Ser

A actividade de comprar conclui em decidir-se por um objecto; mas é também antes uma eleição, e a eleição começa por perceber as possibilidades que oferece o mercado. De onde resulta que a vida, no seu modo «comprar», consiste primeiramente em viver as possibilidades de compra como tais. Quando se fala de nossa vida sói esquecer-se disto, que me parece essencialíssimo: a nossa vida é em todo o instante e antes que nada consciência do que nos é possível. Se em cada momento não tivéssemos à nossa frente mais que uma só possibilidade, careceria de sentido chamá-la assim. Seria apenas pura necessidade. Mas ai está: esse estranhíssimo facto da nossa vida possui a condição radical de que sempre encontra ante si várias saídas, que por serem várias adquirem o carácter de possibilidades entre as quais havemos de decidir. Tanto vale dizer que vivemos como dizer que nos encontramos num ambiente de determinadas possibilidades. A este âmbito costuma chamar-se «as circunstâncias».

Toda a vida é achar-se dentro da «circunstância» ou mundo. Porque este é o sentido originário da idéia (mundo). Mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida,

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