Nada Ă© Suficiente para se Morrer
– Nunca pensou escrever um romance?
– Sou um autor de folhetos, acho que interrogativos, e sobretudo um muito interrogativo leitor de perguntas. Mais nada.
– Basta para uma vida ?
– Nem sei se basta para uma verdadeira morte. Nada Ă© suficiente para se morrer. Ou Ă© suficiente cruzar os olhos com os de uma leoa materna. Ou brandir esse pequeno objecto elĂ©ctrico, embora seja tĂŁo pequeno e a noite por todos os lados do quarto pareça interminável. Conheci um homem, um psiquiatra descontente — sĂŁo raros, os psiquiatras descontentes, conheço-os muito contentes a ganhar para enlouquecer as pessoas, rende tanto como a polĂtica, trata-se de polĂtica, a sinistra polĂtica dos tratamentos —, vivia numa ilha, este, descontente, adorava falar de estrelas, constelações, sabia tudo, mas era, digamos, estelarmente irredutĂvel: estava contra a ordem celeste. Mandou substituir o tecto do quarto de dormir por uma abĂłbada com um sistema electrĂłnico de corpos celestes, deslocados, todos, relativamente Ă estrutura natural, autĂłnomos entre si. Ali era a lua nas suas fases e as Ursas e o Cruzeiro do Sul e a estrela Arcturus: um sistema de teclas permitia acender aquilo que se desejasse. O que vigorava era um cĂ©u dele,
Textos sobre Lados de Herberto Helder
3 resultadosO PrestĂgio da Poesia
O prestĂgio da poesia Ă© menos ela nĂŁo acabar nunca do que propriamente começar. É um inĂcio perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprendemos entĂŁo certas astĂşcias, por exemplo: Ă© preciso apanhar a ocasional distracção das coisas, e desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa consciĂŞncia; e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um momento, rápidas, e rapidamente pĂ´-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas durante a sua fortuita distracção, um interregno, um instante oblĂquo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. TambĂ©m roubámos a cara chamejante aos espelhos, roubámos Ă noite e ao dia as suas inextricáveis imagens, roubámos a vida prĂłpria Ă vida geral, e fomos conduzidos por esse roubo a um equĂvoco: a condenação ou condanação de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede a insolvĂŞncia biográfica: com os nomes, as coisas, os sĂtios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se nĂŁo refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocĂnio.
Vivemos demoniacamente toda a nossa inocĂŞncia.
Os Recursos de um Poeta
Presumo que um poeta dispõe de recursos muito mais amplos do que os meramente verbais e que, utilizando-os mesmo em exclusivo, eles devem tender Ă organização nĂŁo apenas literária, ou gramatical, ou rĂtmica. Compreendo que se possam fazer poemas recorrendo, por exemplo, Ă expressĂŁo matemática, ao grafismo, Ă tĂ©cnica comercial e industrial, Ă s máquinas, Ă mĂşsica, ou a qualquer outra fonte e tipo de sintaxe. Por outro lado, imagino que as preocupações do poeta se devem libertar da linguagem organizada para o diálogo. Max Bense afirma algo de semelhante, ao acentuar que «no conceito convencional de literatura, põe-se a ĂŞnfase na função comunicativa-social dela, enquanto que, no conceito progressivo, se insiste na sua função experimentativa-intelectual». Interessa-me, portanto, chegado que sou Ă convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a mover-me em cĂrculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me digo, muito menos executar, uma gramática literária, destinada ao diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia, do diálogo, no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos antigos como alguĂ©m se pode sentir ligado a um paciente e doloroso erro…