Textos sobre Noite de Herberto Helder

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Textos de noite de Herberto Helder. Leia este e outros textos de Herberto Helder em Poetris.

Nada Ă© Suficiente para se Morrer

– Nunca pensou escrever um romance?
– Sou um autor de folhetos, acho que interrogativos, e sobretudo um muito interrogativo leitor de perguntas. Mais nada.
– Basta para uma vida ?
– Nem sei se basta para uma verdadeira morte. Nada Ă© suficiente para se morrer. Ou Ă© suficiente cruzar os olhos com os de uma leoa materna. Ou brandir esse pequeno objecto elĂ©ctrico, embora seja tĂŁo pequeno e a noite por todos os lados do quarto pareça interminĂĄvel. Conheci um homem, um psiquiatra descontente — sĂŁo raros, os psiquiatras descontentes, conheço-os muito contentes a ganhar para enlouquecer as pessoas, rende tanto como a polĂ­tica, trata-se de polĂ­tica, a sinistra polĂ­tica dos tratamentos —, vivia numa ilha, este, descontente, adorava falar de estrelas, constelaçÔes, sabia tudo, mas era, digamos, estelarmente irredutĂ­vel: estava contra a ordem celeste. Mandou substituir o tecto do quarto de dormir por uma abĂłbada com um sistema electrĂłnico de corpos celestes, deslocados, todos, relativamente Ă  estrutura natural, autĂłnomos entre si. Ali era a lua nas suas fases e as Ursas e o Cruzeiro do Sul e a estrela Arcturus: um sistema de teclas permitia acender aquilo que se desejasse. O que vigorava era um cĂ©u dele,

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Um Único Poema

Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que nĂŁo fabriquei ou instruĂ­ ou afeiçoei objectos — estas palavras nĂŁo supĂ”em o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcçÔes o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque sĂł se consegue isso com inocĂȘncia. E se a inocĂȘncia Ă© uma condição insubstituĂ­vel de escĂąndalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui tambĂ©m um revĂ©s: pois hĂĄ uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriĂĄmo-nos nas coisas; a inocĂȘncia deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos prĂłximos como instantĂąneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demonĂ­acas, o abismo junto Ă  dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocĂȘncia — e entĂŁo jĂĄ nĂŁo sabemos nada, por exemplo: serĂĄ inocente a nossa inocĂȘncia? A inocĂȘncia Ă© um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar,

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O PrestĂ­gio da Poesia

O prestĂ­gio da poesia Ă© menos ela nĂŁo acabar nunca do que propriamente começar. É um inĂ­cio perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos estendidos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprendemos entĂŁo certas astĂșcias, por exemplo: Ă© preciso apanhar a ocasional distracção das coisas, e desaparecer; fugir para o outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa consciĂȘncia; e apanhĂĄ-las quando fecham as pĂĄlpebras, um momento, rĂĄpidas, e rapidamente pĂŽ-las sob o nosso senhorio, apanhar as coisas durante a sua fortuita distracção, um interregno, um instante oblĂ­quo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas misteriosas coisas roubadas. TambĂ©m roubĂĄmos a cara chamejante aos espelhos, roubĂĄmos Ă  noite e ao dia as suas inextricĂĄveis imagens, roubĂĄmos a vida prĂłpria Ă  vida geral, e fomos conduzidos por esse roubo a um equĂ­voco: a condenação ou condanação de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede a insolvĂȘncia biogrĂĄfica: com os nomes, as coisas, os sĂ­tios, as horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se nĂŁo refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum latrocĂ­nio.
Vivemos demoniacamente toda a nossa inocĂȘncia.